terça-feira, 13 de outubro de 2009

Virtual Insanity

Como habitualmente, tomou o elevador para o 17º andar. O escritório onde trabalhava ocupava os dois últimos pisos da torre das Amoreiras pelo que, diariamente, lhe era dada a conhecer a maioria das caras que trabalhavam abaixo. Os bons dias, murmurados entre lábios, há muito tinham deixado de ser uma questão de educação e foram sendo gradualmente substituídos por um muito ligeiro aceno de cabeça e um longo piscar de olhos.
Lá chegada, tirava o casaco e começava imediatamente a teclar no computador de secretária. Abria o Outlook, o Windows Explorer, o Messenger e o Twitter. Lia rapidamente os e-mails e respondia aos urgentes, não sem antes passar os olhos pelas parangonas no Correio da Manhã On-line.
No iGoogle deitava uma espreitadela aos marcadores favoritos e entrava num ou noutro blogue para ficar a par das novidades das crónicas. Era assídua comentadora em vários blogues, assinando com diferentes nicknames, o que habilmente usava para estimular diversas personalidades e que se revelavam no teor dos comentários que postava. Nalguns assinava branca_de_neve, demonstrando uma personalidade dócil e apaziguadora. Noutros preferia nicks mais irónicos, como chico_bento_XVI, o que imediatamente dava uma ideia do teor provocatório das mensagens que transmitia.
O Facebook era o seu próximo e último destino. Dedicava-lhe muito tempo diariamente. Primeiro, o FarmVille, onde fazia as colheitas das sementeiras da véspera e plantava novas. Nunca se esquecia de pensar no tempo que estas demorariam a dar frutos, calculando rigorosamente cada uma delas para que estivesse on-line no exacto momento da colheita. Isto, naturalmente, obrigava a um planeamento intenso das suas actividades, muitas vezes ocasionando que tivesse que cancelar compromissos para poder estar em casa ou no trabalho à hora prevista.
Foi o que aconteceu à hora do almoço, quando declinou um convite insistente de duas colegas do departamento jurídico que prometiam conversa animada e novidades escaldantes. Preferiu, então, passar a sua hora de pausa colhendo malaguetas e plantando uvas. Ainda recolheu uma ovelha preta que prontamente ofereceu a jack_ass, um amigo virtual com quem costumava trocar presentes no YouVille. Nesse jogo já estava íntima de vários vizinhos, como lady4rent, im2sexy, w8_4me e, especialmente, ex_con. Conversava animadamente com todos eles, por meio de mensagens escritas, numa linguagem parente afastada do inglês.
A tarde passou rapidamente, tão embrenhada que estava na sua Farm. Entre um ou outro pedido da sua chefe, que prontamente resolveu, teve ainda tempo para comentar mais oito posts de vários blogues, publicou na sua página novas fotografias que tirou à socapa na cobertura da torre e aceitou mais catorze amigos.
À saída, os mesmos acenos velados no elevador e o trajecto até casa, a pé. Na sua cabeça, a cifra recorde de 635 amigos anima os seus pensamentos. Já em casa, de pé na cozinha, durante o tempo que decorre enquanto engole uma tigela de sopa fria e um wrap que sobrara do almoço de véspera, revê os comentários que postou e ri-se, satisfeita, pela prestação.
Ao pôr o lixo à porta, choca o olhar nas olheiras tristes da vizinha da frente. Não evita um misto de empatia e desprezo, ao pensar naquela pobre velha sozinha, com a casa cheia de gatos e sem ninguém para conversar, para além das habituais paredes, atentas ouvintes. Isso nunca lhe aconteceria, pensou confiante. E concluiu: “Que sorte a minha!”
Já sentada na beira da cama, num quarto alumiado à luz do desktop, aconchega a única almofada e fecha a tampa do portátil. Amanhã há mais.

Português Suave

5 comentários:

  1. O Português Suave pôs o dedo na ferida...
    Numa época em que todos estão "ligados" pelas redes sociais, quando foi a última vez que se riu com um amigo, cara a cara, quando é que teve um almoço de fim de semana que demorasse três ou quatro horas, em que discutisse e trocasse ideias com pessoas de carne e osso?
    Belo texto para se meditar sobre ele...

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  2. Grande personagem este. A história podia ser desenvolvida e ir dar a um crime... não sei, fantasias minhas.

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  3. Estes Contos do Arco da Velha o que são?
    Um novo Concurso?

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  4. Conheço-lhe o sincopado das frases, o ritmo, a certeza e a dúvida, à légua.
    Já dou por mim a ler e a adivinhar o autor!
    Muito bom, mesmo, Português Suave! Mas olhe que a sua Suavidade tocou fundo em mim e na MTH!

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  5. Adorei esta parte, dá conta de tudo:

    "Não evita um misto de empatia e desprezo, ao pensar naquela pobre velha sozinha, com a casa cheia de gatos e sem ninguém para conversar, para além das habituais paredes, atentas ouvintes."

    Parabéns, P.S.

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