sexta-feira, 5 de março de 2010

Este brando país dos"actos de desespero por causa indeterminada"

O que não foi dito sobre o caso do menino
que se lançou ao rio Tua

Alguns órgãos da comunicação social têm referido a tragédia do jovem Leandro, em Mirandela, como «o primeiro caso mortal de bullying em Portugal». Não é verdade. Não por culpa da comunicação social, que se limitou a repercutir declarações de entidades académicas e policiais. Não é verdade, insisto. Dito de modo mais frontal: é uma mentira antiga. Nos últimos tempos ocorreram vários casos que estão firmados em testemunhos pessoais e públicos de personalidades fidedignas de áreas adstritas ao fenómeno, em especial a da pedopsiquiatria. Foi precisamente um caso mortal que esteve na génese de uma investigação jornalística que desenvolvi durante largo tempo e vertida mais tarde para livro. Contudo, tragicamente, o número será maior que os dos testemunhos e das notícias difundidas em termos nem sempre explícitos.
Há cerca de três meses tive a oportunidade de circunstanciar neste espaço alguns aspectos menos conhecidos do fenómeno negro que, à falta de termos sintéticos nacionais, se internacionalizou como bullying. Aludi então ao insurgimento manifestado por destacados pedagogos portugueses sobre a forma como no País se ignora ou subestima o suicídio juvenil, não raro encoberto sob a falácia da “causa indeterminada”. A expressão exacta, convencionada, é: «acto de desespero por causa indeterminada». O bullying, uma ou outra vez associado a esses actos desesperados, não é assumido. E remete-se a explicação dos desfechos dramáticos para o domínio do mistério. Urge aditar outro facto incómodo: esta tem sido também uma forma expedita de os estabelecimentos de ensino se excluírem do embaraço de conviverem historicamente com um episódio de suicídio gerado pelo bullying.
A falácia continua a fazer o seu caminho. Não haja dúvidas: o caso do menino que se lançou ao Tua não tardará a ser engolido pelo refugo-padrão dos actos de desespero por causa indeterminada. Significativo que o vocábulo “suicídio” seja evitado quanto possível. A expressão “suicídio juvenil” está banida neste brando país.
Não menos constrange ler e ouvir afirmações (abundantes nos últimos dias) do género: «Na escola, todos batem uns nos outros, sempre foi assim». Ora, tal realidade nada tem que ver com bullying. Nenhum jovem irá suicidar-se na sequência de uma agressão isolada, de uma zaragata de recreio, até de uma forte cena de pancadaria. O bullying transcende esses episódios, mesmo que alguns deles possam atingir um grau de violência preocupante. Mais, imensamente mais, o bullying é uma tirania física e/ou psicológica exercida por uma entidade (quase sempre grupal) sobre vítimas frágeis (Leandro era uma criança enfezada), de forma continuada (semanas, meses, anos). Essa tirania poderá um dia conduzir a vítima a um acto suicidário. Às vezes, como tem ocorrido sobretudo nos EUA, o suicídio é antecedido de uma “chacina de vingança”.
O jovem Leandro saiu disparado da escola, a chorar, anunciando que ia atirar-se ao rio. Este fragmento de notícia traz à memória o caso de Jokin Cebrio, um menino espanhol que há algum tempo se lançou das muralhas da cidade de Hondarribia, onde vivia. Também Jokin abandonou a escola, repentinamente, e dirigiu-se a casa. Não estava ninguém. Deixou um papel informando os pais que não suportava mais a maldade de alguns colegas. Saiu e encaminhou-se para as altas muralhas. Choraria também, durante esse percurso? Podemos prever que sim. Chegado ao cimo, venceu todos os obstáculos físicos de segurança e lançou-se.

O bullying é também isto: fugir, fugir, fugir.

E quando fugir não é mais possível, resta uma fuga alada para a morte.

Pedro Foyos
Jornalista

5 comentários:

  1. Coincidências...

    Acabei de elaborar uma proposta para as escolas da zona onde trabalho para flarmos de Bullying com os miúdos (de 1ºciclo e pré-escolar, que de pequenino...) e professores e pessoal auxiliar e pais...

    Já o tinhamos pensado há algum tempo. Eis senão quando...

    Coincidências... Infelizes. Ou não.

    Aproveitar o momento, enquanto não cai no esquecimento da opinião pública. Porque os miúdos que passam por isto ( e as famílias) dificilmente o esquecem.

    Ouvem-se histórias destas há anos. E desvaloriza-se. Afinal, os putos são ou não são homenzinhos, que têm de se desenrascar?

    E a nossa responsabilidade social? Onde anda?

    Gostei muito do texto. Acerta lá onde nos dói. Na nossa responsabilidade colectiva.

    Um Olé, com Duende!

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  2. No comentário da La Payita está tudo dito.
    De acrescentar, apenas, que a nossa responsabilidade social anda escondida debaixo do manto diáfano da cobardia.

    Outro texto tocante e verdadeiro do Pedro Foyos.

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  3. No meu tempo no C.M. nós preferíamos a acção directa.

    O Alberto, o Gonçalo, eu e uns quantos mais tratávamos de encontrar à noite os gaijos do (antigo) 7º ano, os graduados, que eram especialmente cruéis com os putos e chegávamos-lhes a roupa ao pêlo.

    Funkava...

    :-)

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  4. Confesso, PF, que por vezes acho os seus textos demasiado densos para o espírito de um blog, não deste mas na generalidade, mas este post e o anterior do diálogo das Escutas mostram o seu talento e sensibilidade.

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  5. PF
    Obrigada pelo excelente texto que partilha connosco. Gostaria muito de ver este assunto mais debatido neste blog, até porque a comunicação social dedica muito tempo a contar o que aconteceu, mas infelizmente, dedica pouco tempo a explicar como todos podemos contribuir para que estas situações deixem de acontecer.

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