Perder um amigo daquela forma tão brutal, fê-lo despertar para o seu próprio papel na revolução.
Era apenas um pintor, é certo, mas pelo seu activismo político fora muitas vezes rotulado de ‘terrorista feroz’.
Nunca fizera nada de concreto para se desmarcar dessa imagem; afinal, o medo que têm de nós pode ajudar-nos a conseguir o que ambicionamos, pensava.
E o que queria era, sobretudo, uma sociedade mais justa, democrática, sem regalias para os nobres e com direitos iguais para todos os Homens.
Dito desta forma, os seus ideais eram puros e honestos.
Não conseguia, porém, lembrar-se em que altura dos acontecimentos adoptou a postura insensata de achar que todos os meios justificam os fins.
Era uma tarde quente de Julho.
Saiu de casa de Jean-Paul, no bairro de Saint-Germain, ainda com sangue nas roupas e nas mãos. Deambulou pelas ruelas até se deter num local ermo, junto ao Sena, onde tentou em vão lavar aquelas manchas.
Assistira a muitas execuções, tantas que ver duzentas ou trezentas cabeças a rolar para dentro de um cesto já se tinha tornado uma visão descaracterizada de sentimentos.
Mas aquele sangue era diferente.
Ele conhecia Jean-Paul. Eram amigos.
Mais que isso, irmãos na revolução.
Lutaram juntos pelos ideais Jacobinos.
Conheciam-se tão profundamente que era quase como se partilhassem a mesma alma.
Por isto, estava ainda mais estonteado com a descoberta que levara àquele desfecho fatídico.
Como pôde não perceber que estavam ambos apaixonados pela mesma mulher?
Charlotte, doce Charlotte, tinha vindo para o seu coração numa clara ingerência divina.
Ela devolveu-lhe a esperança de retomar a vida simples como se lembrava dela.
Por ela estaria disposto a abandonar a revolução, o poder, e recomeçar numa qualquer aldeia da Provence, talvez a pintar pequenas paisagens.
Jean-Paul, desconcertado com a descoberta do triângulo, desafiou-o, a si, seu amigo de sempre, para um duelo.
Charlotte não o permitiu e lutou pelo seu amor da forma mais brusca e definitiva.
E agora Jean-Paul estava morto, na banheira do gabinete, de onde costumava redigir os seus artigos de jornal.
Nessa posição não teve fuga possível à investida do punhal que lhe penetrou o coração.
Logo o coração, pensava agora.
Aquele órgão que se dera a Charlotte pereceu, ironicamente, às suas mãos.
Ele assistiu a toda a cena.
Não conseguia impedi-la, mesmo que quisesse.
Estava encerrado entre a salvação do amigo e a vontade de que aquilo realmente acontecesse. Viu o jorro pelo orifício exposto no peito.
A água tornando-se sangue.
Ela, com os mesmos olhos meigos, a mesma candura, vira-se para si e deposita-lhe um beijo mudo na cara, ao lado de duas riscas de sangue que fizera com os dedos numa carícia de despedida.
Voltou-se e, sem olhar para trás, foi entregar-se à família de Jean-Paul, no andar de baixo.
Foi guilhotinada quatro dias depois.
Numa perversa busca por culpados maiores, o crime viria a ser classificado como atentado da facção Girondina, o que serviu como justificação para todas as barbaridades públicas que se viriam a cometer naquele ano, incluindo a condenação à morte da defensora dos direitos das mulheres, Olympe de Gouges e da própria Marie Antoinette.
Só ele sabia que fora pura e simplesmente um crime passional.
Sabia, também, que mesmo que o revelasse, além de não trazer de volta Charlotte, provavelmente ditaria a sua própria sentença de morte.
Restava-lhe uma última chance de esclarecer a verdade e de repor alguma justiça no sucedido.
E nisto cogitava enquanto se debatia com as manchas de sangue na água do rio, sob os carvalhos centenários que o cobriam de fresco.
Recompôs-se, vestiu-se e seguiu para casa.
Durante dias esteve fechado no seu atelier no sótão, a pintar.
Não recebeu ninguém. Mal comia.
Por fim, terminou a tela.
Uma ode ao seu amigo Jean-Paul Marat, ícone da revolução, idolatrado ainda mais pelo seu trágico fim.
E que melhor retrato que o do dramático momento da sua morte, para penetrar na opinião pública e, em simultâneo, insinuar a verdade?
Os jacobinos exultaram-se com o quadro.
Mais do que o talento, Jacques-Louis David, encarnava, naquela obra, o sentido patriótico da revolução.
Mas o verdadeiro propósito está lá, em letras pequeninas, subtilmente desenhadas no papel que o moribundo Marat prende entre os dedos hirtos.
Quase ninguém repara no que nele está escrito.
Deduz-se que era mais uma das notas jornalísticas que Marat estaria a escrever na altura.
Mas não.
Ainda hoje, quem vê de muito perto o quadro no Real Museu de Belas Artes de Bruxelas, pode ler:
“13 de Julho 1793
Marie-Anne Charlotte Corday ao cidadão Marat:
Basta que eu seja muito infeliz para ter direito à sua indulgência”.
Merecidamente, teve-a.
Dani Marrón
terça-feira, 2 de junho de 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Sempre li que o assassinato do Marat, feito na banheira pela tal Charlotte tinha tido raízes políticas.
ResponderExcluirFantasia ou não, gostei do conto.
Excelente esta visão da história.Belíssimo conto.
ResponderExcluirMuito legal mesmo.
ResponderExcluirQuando eu nasci Reagan foi eleito Presidente, morreu Sá Carneiro,um moço desviou um avião da TAP para Madrid, começou as emissões de TV a cores,Sporting ganhou o Campeonato e o melhor Filme foi Kramer vs.Kramer, com Dustin Hoffman como melhor actror.Nas músicas, Chico Fininho, Eu tenho dois Amores e Cavalos de Corrida.
Não vale começar a fazer contas...
O outro do Marrón era acerca da Mona Lisa, não era? Excelente, e nada fácil, esta ideia de ir escrevendo Contos sobre mistérios da Pintura. Os meus parabéns com BRAVO !
ResponderExcluirJá deu para entender que botei o comentário no local errado....
ResponderExcluirFavor ler com o Jornal do Nascimento.
Moça burra...
Sem comentários.
ResponderExcluirDesnecessários.
Excelente ponto de partida para uma obra de mais fôlego.Parece uma sinopse.
ResponderExcluirA "cena", como diz o meu filho, da Maja desnuda e vestida também é capaz de ser boa para ser trbalhada nesta série, ou não, Marrón?
ResponderExcluirParabéns pela magnífica ideia.
Venham mais contos Dani Marrón...
ResponderExcluirAlém de muito bem escritos, muito envolventes, os temas têm sido aliciantes. Verdade ou ficção o facto é que nos faz pesquisar!