segunda-feira, 1 de março de 2010

A Bufaria - Marinho Pinto

O caso Mário Crespo não é um problema de liberdade de informação, mas (mais) um sintoma da degradação a que chegou a comunicação social.
Uma conversa privada do primeiro-ministro, num restaurante, sobre um jornalista que há anos o critica publicamente, é prontamente denunciada ao visado que logo tenta criar um escândalo político.
Sublinhe-se que ambos são figuras públicas com direito a terem, uma da outra, as opiniões que entenderem.
Apenas com um senão: nem José Sócrates poderá usar os seus poderes de primeiro-ministro para perseguir o jornalista Mário Crespo, nem este deverá usar os meios de que dispõe como jornalista para perseguir o primeiro-ministro.
Porém, os jornalistas, em geral, julgam-se no direito de publicar as opiniões que quiserem (por mais ofensivas que sejam) sobre os governantes (mesmo violando as regras éticas do jornalismo), porque entendem que isso é direito de informar.
Mas se os visados emitirem a mais leve opinião sobre esses jornalistas isso é um ataque à liberdade de informação.

O jornalismo português tem vindo a degradar-se por falta de referências éticas.
Hoje, tudo vale para obter informações, incluindo o recurso a "bufos".
Nos tempos do Estado Novo usava-se esse termo para designar as pessoas que davam informações à polícia política sem que ninguém desconfiasse delas.
Geralmente eram da confiança das vítimas.
Faziam delação às escondidas, por dinheiro ou simplesmente para tramar os visados.
Agora continua-se a denunciar pessoas a quem as possa tramar.
Os "bufos" são os informadores privilegiados dessa nova polícia de costumes em que se transformaram certos órgãos de informação de Lisboa.

Vejamos alguns exemplos. Há alguns anos, um político e professor universitário (Sousa Franco), por sinal meio surdo, conversava tranquilamente num restaurante.
Numa mesa ao lado, uma jornalista (/talvez disfarçada de costeleta de borrego/) tomava notas da conversa, sem que os visados se apercebessem.
Dias depois o teor da conversa era manchete num semanário de Lisboa.
Também há alguns anos, um professor do ensino secundário (Fernando Charrua), conversando com um colega no gabinete deste, emitiu sobre o primeiro-ministro uma daquelas opiniões que só se expressam em conversas privadas.
Pois, logo o colega o foi denunciar aos superiores hierárquicos.
O mesmo aconteceu com um juiz conselheiro que, numa conversa a dois com um colega, emitira o mesmo tipo de opinião sobre o Conselho Superior da Magistratura.
Logo o colega o foi denunciar ao CSM.
Mais recentemente, um magistrado do Ministério Público que, durante um almoço com dois colegas, opinara sobre um processo de que estes eram titulares foi de imediato denunciado por os ter "pressionado".

Hoje não se pode estar à vontade num restaurante, porque ao lado pode estar um "bufo" a ouvir a conversa para a ir relatar ao seu tablóide preferido.
Até a factura da refeição pode ser útil para o mesmo fim.
A privacidade deixou de ter qualquer respeito ou protecção.
Os meus rendimentos, constantes da minha declaração de IRS, foram obtidos ilicitamente nas finanças e andaram a ser oferecidos a alguns jornalistas de Lisboa até que um deles os publicou. Tudo para tentar desqualificar-me como advogado, mostrando que, supostamente, eu ganhava mais como jornalista.

A sordidez desse tipo de jornalismo traz-me à memória um episódio ocorrido há cerca de 20 anos em que se chegou ao ponto de tentar fazer uma notícia sobre uma consulta de ginecologia de uma dirigente política, que na altura desempenhava funções governamentais.
Tudo isso é possível porque o jornalismo está em roda livre, sem qualquer regulação e a própria justiça, em vez de corrigir esses desvarios, coonesta-os e acaba por também recorrer a eles.

Por mim tomei vários cuidados. Evito conversas em restaurantes, já não falo ao telefone e mesmo no meu escritório já tomei as devidas precauções.
Perdi toda a confiança nas comunicações em Portugal porque a deriva fundamentalista e justiceira de muitos dos nossos magistrados mostra que qualquer pessoa pode estar sob escuta, incluindo as mais altas figuras do Estado.
Por isso, não falar ao telefone é hoje um gesto tão prudente como o era no tempo da ditadura.
E mesmo como advogado, já retirei do meu escritório quaisquer elementos que possam ser usados contra alguns dos meus clientes, pois é normal em Portugal fazerem-se buscas a escritórios de advogados, com mandados em branco, ou seja, com ordem para apreender tudo o que possa ajudar a incriminar os seus constituintes.

Marinho Pinto in JN

Enviado pelo Armando Cardoso

3 comentários:

  1. Interessante texto que nos coloca vários problemas.
    Onde começa e onde termina a definição de conversas do foro privado?
    Os jornalistas podem divulgar tudo o que querem?
    A Justiça anda em roda livre, forçando a PJ para lá do que é admissivel?
    O País avança para se substituir na imagem dos países da América do Sul?
    Os governantes e politicos são intocáveis?
    Um Bastonário da OA não deve ter obrigação de recato?
    De qualquer forma caminhamos muito mal,obrigados a um clima politico conspurcado como não há memótia.
    E não será que os bloguistas não começarão a ser perseguidos ?

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  2. Primeiro levaram os negros
    Mas não me importei com isso
    Eu não era negro
    Em seguida levaram alguns operários
    Mas não me importei com isso
    Eu também não era operário
    Depois prenderam os miseráveis
    Mas não me importei com isso
    Porque eu não sou miserável
    Depois agarraram uns desempregados
    Mas como tenho meu emprego
    Também não me importei

    Agora estão me levando
    Mas já é tarde.
    Como eu não me importei com ninguém
    Ninguém se importa comigo.

    Bertold Brecht
    ________


    Este poema tem-me guiado toda a vida ...
    E não posso deixar de pensar nele quando vejo uma sociedade aceitar de bom grado toda a espécie de tropelias, boatos e atitudes sórdidas ... só porque as vitimas são os políticos do outro Partido que não o da nossa simpatia ! ( e isto aplica-se a todos os quadrantes partidários …)
    Foi por isso que mandei o texto do Marinho Pinto para o “Galo”, até porque, como seria previsível ( e apesar de inquestionável ) não encontrou qualquer eco junto dos “ opinion maker” nacionais …

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  3. Bom, uma coisa boa da falta de privacidade era que os gajos da malta se limitavam a escolher alguém p'ra ir ao Bonaparte, onde estava lá o major A.T. a beber e e derramar 'coisas'.

    Foi assim que eu soube do 25.04 antes do meu Pai...

    :-)

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