quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Um livro desaconselhável em absoluto a quem tenha um jardim ou plantas em casa

Já que se falou aqui de Brian W. Aldiss, meu dilecto autor, não seria despropositado abrir um espaço evocativo da sua obra-prima, o memorável romance Hothouse (Estufa, em tradução literal; o título em português, A Longa Tarde da Terra, adopta a edição americana). Há um texto de badana que é tão exuberante quanto verdadeiro:

«Pode ter a certeza, leitor, quando terminar este livro, de que nunca mais conseguirá olhar para o seu jardim como o fazia antes.»

Confirmo. Só um grande escritor como Aldiss justifica a pilhéria de que um seu livro possa não ser recomendável para determinado sector do público. Porque, sendo uma obra de ficção, logra persuadir o leitor de que estará errada uma certa visão idílica – correntemente "inquestionável" – do mundo vegetal.
Aldiss remove tal ideia encenando com realismo uma antevisão apocalíptica deste planeta sob o jugo de uma imensidão de espécies vegetais demoníacas. A Terra converteu-se numa estufa pavorosa, um jardim sufocante, nada bucólico, onde prolifera e se digladia a nova e soberana flora. E também parasitas indizíveis.
Trata-se de uma ficção, é certo, mas...
Eméritos autores não-ficcionistas confluem na tese de que uma catástrofe nuclear (ou de similar poder exterminador) a uma escala planetária não implicaria o total desaparecimento de vida na Terra.
No reino animal, os primeiros a sucumbir seriam os mamíferos e as aves não-migratórias. Numa teórica graduação biológica de sobrevivência (pelo menos a curto prazo) estariam bem posicionados os répteis e os moluscos hibernantes providos de concha. A fauna marinha das grandes profundidades oceânicas também se aguentaria por algum tempo. A inevitável adversidade que todos estes campeões da resistência enfrentariam, mais tarde ou mais cedo, consistiria na calamitosa carência alimentar devida à crise da biodiversidade em fanicos.
O mesmo problema afectaria o mundo vegetal perante a indisponibilidade de matéria orgânica, com a diferença de que algumas espécies superiores teriam um muito maior poder de adaptação às novas condições.
Cita-se de hábito Hiroshima. Um celebrado sobrevivente da explosão atómica foi um espécime do género Gincgo. E passado algum tempo, não longe da devastada área de impacte, emergiram as chamadas "ervas daninhas" – epíteto desrespeitoso para criaturas que se revelam afinal tão poderosas!


No romance épico de Aldiss, a Terra é ainda a casa dos derradeiros humanos, criaturas ínfimas perdidas no meio da vegetação, cuja odisseia de sobrevivência constitui o tema predominante da ficção.
É possível que os amantes da floricultura, inclusive nas formas mais rudimentares de jardinagem, do tipo floreiras na varanda, estremeçam de pavor. Contudo, sem termos de realizar uma viagem ao futuro, sabemos que existe nos seres do reino vegetal um despotismo silencioso, invisível – inquietantemente real e eficaz. Tiranizam-se entre si e, com vagarosa impiedade, o mais forte dita a lei. Não só: notem-se os embustes ferinos, as hediondas perversidades que sublimam os ardis do reino animal.
As plantas carnívoras não são uma fantasia literária. Sobretudo, ao contrário do que se pensa, não configuram uma "aberração da natureza". Tão-só um descomedimento pouco discreto aos nossos olhos... Tornaram-se carnívoras por razão singela: calhou-lhes na cega roleta da Criação solos inóspitos, paupérrimos de nutrientes. É doloroso, para quem gosta de plantas, vê-las a comer animais. Mas... aquele que se achar sem pecado...

Sou insuspeito: entrosei-me em cumplicidade afectiva com as árvores e plantas em geral que pronto me disponho a ceder-lhes, nas minhas ficções, total liberdade de expressão (um modo de dizer). Ainda numa recente crónica referi que pertenço a um grupo multinacional de apaixonados por uma histórica árvore brasileira que se encontra num grau máximo de ameaça de extinção. Pois essa árvore – belíssima e muito "boa de coração" – é uma personagem central do meu novo romance, Botânica das Lágrimas. E uma outra comunidade científica que integro há anos – a admirável Liga dos Amigos do Jardim Botânico da Universidade de Lisboa (saravá, Prof. Fernando Catarino!) – tem-me ajudado a realizar um ingrato exercício de discernimento: a beleza e a fealdade coexistem em permanência no mundo vegetal, à semelhança, aliás, de tudo quanto vive neste planeta. Sendo que o feio... é mesmo muito feio! Sempre vos direi, em confidência, que as artimanhas de caça em uso no mundo animal parecem brincalhotices quando comparadas, por exemplo, às artes da nossa compatriota vegetal Pinguícula lusitanica, que, ao dar-lhe a larica, sem necessidade de esboçar um passo ou mover um dedinho, limita-se a exalar um irresistível odor capaz de fazer perder a cabeça a toda a sorte de insectos; literalmente: perdem a cabeça e o resto porque num ápice, uma vez retido o sôfrego passeante na goma viscosa, é o mesmo convertido, ao estilo de "maison des crêpes", em recheio de uma folha enrolada e bem precavida de enzimas digestivas. E... «próóóximo!...»

O livro de Aldiss está povoado desses seres fantásticos, bizarros, convulsivos e repulsivos, ao mesmo tempo belos, que, de alguma forma, podemos observar ao vivo num "Garden Center", embora num estádio evolutivo muito incipiente.
Mas um dia... um dia...





Pedro Foyos
Jornalista
Nota: A propósito de "bomba atómica", recomendo vivamente
a leitura do livro "Os Aquários de Pyongyang", de Kang Chol-Hwan,
lançado em Portugal há poucas semanas (Editorial Hespéria).
Um testemunho aterrador mas indispensável à compreensão
de quanto se tem passado (e se passa) na Coreia do Norte.

Imagem de abertura: fotografia laboratorial de Pedro Foyos

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