
Alguns dias depois de termos anunciado as três
Vencedoras do Prémio de MicroContos, e após uma sessão de fotografias com as nossas heroínas, em que aproveitámos para lhes entregar os livros da Bizâncio, publicamos umas pequenas entrevistas e republicamos os MicroContos vencedores, para o caso de já não se lembrarem.
A entrevistada de hoje é a
Dear Prudence,
as outras seguir-se-ão, no decorrer desta semana...
Galo: Qual a sensação de ter ganho o Prémio MicroContos Galo/Bizâncio? Estava à espera?
Dear Prudence: É claro que estava à espera.
Naturalmente, ficava-me melhor dizer que não…
Melhor dizendo, concorri para ganhar.
É que eu, feliz ou infelizmente, padeço desta gloriosa maldição que é ter nascido sob o signo do Leão.
E, francamente, concorrer para participar nunca foi o meu lema. Só concorro quando sei que posso vir a ganhar.
Talvez por isso nunca me tenha inscrito numa maratona de dança ou num concurso de bonsai… Mas que no final foi uma surpresa, lá isso foi.
Galo: O que achou desta iniciativa?
Dear Prudence:Há um aspecto muito importante que me ocorre nesta questão: se por um lado, escrever pode ser um acto de realização íntima, por outro, quando nos expomos gostamos de ter a certeza que é pelos motivos certos. Acho que nenhum dos contistas embarcaria nesta aventura se não estivesse seguro da seriedade e qualidade da dupla Galo/Bizâncio.
Em suma: a iniciativa foi muito bem vinda porque suscitou em todos os contistas, atrevo-me a dizer, o melhor de cada um no melhor dos contextos.
Galo: Excluindo-se, quais os outros Autores que mais apreciou?
Dear Prudence:É curioso; gostei de vários contos mas só
me identifiquei verdadeiramente com um contista:
Maktub.
Desconfio, porém, que terá igualmente escrito sob outros heterónimos.
E que é uma mulher…
Galo: Se o “Galo” instituir, de novo, este Prémio, voltará a participar?
Que eventuais alterações sugere?
Dear Prudence:Voltaria seguramente a participar.
A escrita tornou-se, por causa deste evento, uma parte mais definida
e mais presente em mim.
Paralelamente, proporia um concurso que suponho manteria os leitores
ainda mais atentos à dinâmica da escrita: um concurso do tipo
“descubra o autor!”Isto é, um
post à parte, com palpites acerca de quem será o autor do conto do dia.
Será um comentador habitual e qual? Será outro heterónimo de um mesmo autor?
No final, coligir esses dados e apresentá-los também sob a forma de um prémio
– e seu vencedor - seria tão entusiasmante como participar nos contos!
Uma espécie de
Prémio Ovo de “Columbo”,
em homenagem ao famoso detective de olho de vidro da TV [
Peter Falk].
E, agora, só nos falta relermos o MicroConto Vencedor... O último ContoA tensão entre os dois não faria imaginar o que se estava a passar.
Casados há quase 30 anos, os filhos fora do ninho, as carreiras estáveis, a casa de férias, as viagens para o Brasil, tudo era de uma previsibilidade angustiante.
Despediam-se de manhã com o beijo habitual, ele já de jornal numa mão e chave do carro na outra.
Ela ficava um pouco mais, para dar um ar de casa à mesma, como costumava dizer, e logo o imitava, a caminho do seu emprego.
As rotinas eram matemáticas.
Depois do trabalho, casa à hora do costume, jantar à luz do telejornal, serão em peúgas de andar por casa, a dormitar ferozmente no sofá, um e outro, para acordarem sobressaltados de madrugada, rosnando por uma cama, onde dormiriam a posta-restante de um sono mal temperado.
A intimidade entre os dois há muito que se esvaíra.
Fruto do quê, não sabiam dizer.
Demasiado acostumados, aventava ele ao espelho enquanto fazia a barba;que sempre fora nenhuma, assegurava ela dentro de si.
E assim passaram as últimas décadas até ao momento em que ela se apercebeu que ele mudara.
Não sabia há quanto tempo mas pudera constatar,sem qualquer fio de dúvida, que ele chegava a casa cada vez mais cedo e era logo vê-lo sumir-se no escritório, até ser arrancado para a mesa do jantar.
Depois deste, lá voltava ao computador, deixando para trás as peúgas de trazer por casa sózinhas, sob a almofada do sofá.
E só voltava a encontrar a mulher já na cama, depois da birra de sono que esta envergava sempre antes de subir para o quarto.
Começou, até, a levantar-se mais cedo.
O computador, o seu destino.
Intrigada, naturalmente que ela lhe perguntou o que fazia naquelas horas.
Primeiro, timidamente, lá lhe confessou que agora colaborava num
blog e que lhe estava a dar grande prazer poder escrever e ser lido.
Como essa pergunta da mulher mostrava que ela se interessara,tomou isso como um convite e todas as noites partilhava com ela os
posts, os comentários, os comentários aos comentários.
Inicialmente ela achou aquele
hobby, se não inofensivo, pelo menos construtivo.
Ele sempre gostara de escrever, sabia ela pelas cartas de antigamente que trocaram nos tempos da tropa; que guardava escritos nas gavetas da secretária e até que os acarinhava, o que concluiu pelos cantos desgastados dos papéis sortidos.
Mas não tardou muito para que ela começasse a sufocar naquele labirinto de relatos que lhe toldavam a atenção dos concursos da TV ao serão.
Optou, primeiro, por fingir que não ouvia, esperando que o seu desinteresse o levasse a desistir. Como não resultou, partiu para o contra-ataque: desancava os temas, insultava os comentadores, ridicularizava os
nicknames, tudo servia para agastar aquele fervor da escrita do marido que lhe tirava o sossego.
Chegou mesmo a chamá-lo de imaturo por precisar daquele mimo cibernauta para lhe dar consolo
."Essas massagens virtuais ao teu pobre ego mal acarinhado só vão contribuir para que a solidão te consuma e, em última instância, que destruas o nosso casamento!”- foi a afirmação que rotulou como último aviso.
E, de facto, ele cada vez mais se consumia.
Revirava agora as gavetas buscando os papelinhos escrevinhados para reciclar e dar-lhes outra roupa; as histórias lúdicas da infância, os episódios épicos da tropa, até anedotas ele via e revia para ter matéria sobre o que escrever.
Por fim, uma bela tarde no emprego, olhando-se ao espelho da casa de banho, ele viu-se.
Mais magro e olheirento.
Mal escanhoado pela pressa da manhã.
O chefe a impor-lhe ultimatos pela sua falta de dedicação.
Isto tinha que acabar.
Passou as mãos molhadas pelo rosto e ficou assim, mais uns momentos, pingando para o lavatório a estranhar aquele homem do reflexo.
Decidido, irrompeu pelo gabinete.
Pôs umas vírgulas num último conto que escrevera, publicou-o no
blog e despediu-se deste, para nunca mais voltar.
Resoluto, voltou para casa.
Cheio de vida, observava cândido a realidade que sempre ali estivera, esperando por si: as árvores da sua alameda, o cheiro a pão quente da fornalha vespertina da padaria, os bancos apinhados de namorados e as suas inscrições nas cascas dos plátanos.
Encheu o peito de ar e subiu o alpendre de casa, decidido a mudar também o rumo do seu casamento.
Sentia no ar o cheiro incontornável do amor.
Rodou a chave e sentiu um arrepio.
Não havia móveis, apenas a sua secretária com um
post-it colado ao computador.
O calafrio tomou a forma de um aviso de desmaio e sentou-se.
Pôde então ler:
“Vou viver outra realidade que não a virtual”.A sua mulher fugira com o
im4real69.
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