De todas as "trapalhadas", como sói chamar-se, em que José Sócrates se meteu ou o meteram, a mais grave, para mim, é a história das casas que ele, enquanto "engenheiro técnico", desenhou em Castelo Branco para os "amigos". Tudo o resto me parece que ou não tem substância ou não terá nunca provas que sustentem as suspeitas. Do Freeport não chegará nunca a ser pronunciado, como sempre previ (e essa será a morte póstuma do "Jornal de Sexta"); do negócio de compra da TVI pela PT só será incriminado se a Comissão Parlamentar de Inquérito chegar, como habitualmente, a conclusões políticas - porque o resto é matéria de pura especulação; e, do curso na Universidade Independente, toda a gente percebeu a história: o curso não era recomendável, mas ele limitou-se, como tantos outros diplomados, a tirar partido da bandalheira em que caiu parte do ensino universitário. Resta o affaire Luís Figo, que é grave na medida em que indicia utilização de dinheiros públicos para fins de propaganda eleitoral partidária. E restam as tais casinhas para os amigos, onde as opções que lhe restaram foram só duas: ou assumir que tinha assinado de cruz os projectos - o que seria muito grave - ou assumir que a autoria daqueles abortos urbanos era mesmo dele. Entre as duas, e como seria de esperar, Sócrates optou pela segunda. Assim sendo, e não havendo razão válida para duvidar, o primeiro-ministro é mesmo o autor daquilo. E isso é deveras preocupante, quando se pensa que ele é, em última análise, o responsável pela política de ordenamento do território, de defesa do ambiente, da paisagem e do património arquitectónico do país. Tanto mais que, tendo ele próprio ocupado a pasta anteriormente, reduziu a meros figurantes os ministros que nomeia para lá.
Escudado nos PIN - uma invenção do seu primeiro governo e um instrumento político que permite fazer tábua rasa de todas as regras de ordenamento, em nome do "interesse nacional" - José Sócrates tem conduzido uma autêntica política de terra queimada em matéria de defesa do património natural do país. Sempre com a desculpa do desemprego, da necessidade de atrair investimento estrangeiro e do desenvolvimento do cluster turístico. Mas, afinal, que outras desculpas poderia haver? Essas desculpas são as ameaças clássicas e é justamente contra elas, e nos bons e nos maus momentos, que se mede a vontade de resistência de um governo aos ataques ao património natural do país. Neste domínio, não há meio-termo: ou se tem uma atitude defesa ou de condescendência. Não dá para variar, conforme a conjuntura, as circunstâncias ou os pretendentes. E os governos de José Sócrates não enganam ninguém: desde o início, antes ainda de a crise ser oficialmente decretada, eles mostraram que estão aí para facilitar tudo o que puderem. Nisso, pelo menos, ninguém pode dizer que foi enganado: esta é a política do Governo, assumida e à vista de todos.
É por isso que esta semana, com pompa e circunstância, José Sócrates foi inaugurar o primeiro pólo de urbanização da orla de Alqueva - cuja capacidade de construção turística ele subiu de 400 para 22 000 camas e pronto a alargar mais ainda, à medida que as pretensões forem chegando. Claro que o discurso é o mesmo de sempre: será um "turismo sustentado", de "qualidade", que evitará erros anteriores e "nada terá que ver com o Algarve". Isto é dito com a maior das canduras, ao mesmo tempo que o Algarve se vai alegremente repetindo a si próprio: nos últimos dez anos perdeu dois milhões de turistas mas tem já mais cem hotéis e trinta golfes aprovados, numa insana estratégia de fuga em frente que só pode (aliás, merece) acabar mal. Mas, entretanto, o Algarve vai cumprindo politicamente o seu papel de mau exemplo útil para justificar os "bons exemplos" que agora se pretendem lançar na costa alentejana, em Alqueva e no pouco mais que ainda resta por estragar.
Sócrates foi, pois, inaugurar as obras de uma coisa pomposamente chamada "Roncão d'El Rey" (é conhecida a apetência dos promotores turísticos pelas denominações retro-grandioso-pirosas, sobretudo envolvendo as palavras "rey" ou "real" e os acrescentos em inglês técnico-turístico: Beach and Spa Resort, Golf and Spa Residences, Lake Marina Spa Villas, etc., coisa fina para impressionar comendadores do Vale do Ave). O "Roncão d'El Rey", do empresário José Roquete, aproveita a mais extraordinária oportunidade de negócio (ou "sinergias", como gostam de dizer) acontecida em Portugal nas últimas décadas: a construção da barragem de Alqueva. Destinada, relembro, a três fins: agricultura, produção de energia e reserva estratégica de água; nunca, jamais, como nos garantiram então, a dar água a aldeamentos turísticos ou regar campos de golfe. Alqueva foi financiado pelo esforço dos contribuintes portugueses e comunitários e, graças a ele, nasceu ali, nas terras áridas e sem valor algum do sequeiro alentejano, o maior lago artificial da Europa. De um momento para o outro, aquelas terras passaram a valer cinquenta ou cem vezes mais e a grande maioria dos potenciais beneficiados - os tais agricultores que gritavam "construam-me, porra!" - correram a vender as suas terras aos espanhóis ou outros estrangeiros. Nisso, Roquete tem mais mérito: ficou e investiu e agora tem um lago oferecido a seus pés, para o Roncão d'El Rey. Se você pertence ao número dos que pagam mesmo impostos, pode considerar que um rincãozinho do Rincão, e do mais que se seguirá, também é seu.
Um senhor americano, chamado Len Silverfine, especialista em "marketing estratégico", está encarregado da promoção do projecto e está confessadamente entusiasmado, como qualquer um estaria no lugar dele. Primeiro, começou por vender a uma imprensa acrítica as mesmas fábulas de sempre, sobre a "integração do projecto no ambiente e na comunidade" (?!) ou a criação de "2000 postos de trabalho directos e 3000 indirectos" (já alguém, alguma vez, se deu ao trabalho de ir verificar a concretização destes fantásticos números sempre atirados para o ar para impressionar o engº Sócrates?). Depois, divide simpaticamente connosco a revelação de que "o Alentejo é a última zona virgem da Europa... a única zona completamente negra à noite". Aquilo, diz ele, "é como o Oeste para os americanos: tem o mesmo romantismo". Ah, mas descansem que a virgem romântica está prestes a ser libertada: "Agora, diz o sr. Silverfine, temos este lago imenso que nos abre possibilidades que nunca estiveram lá". Comecemos, então, pelo Roncão: dois mil hectares, sete hotéis, quatro campos de golfe (porque os turistas aborrecem-se de jogar sempre no mesmo), aldeamentos turísticos, duas marinas, centro equestre e um campo de férias. O senhor Silverfine, a nossa bala de prata, não tem dúvidas e deixa-nos mais uma fantástica revelação: "os portugueses não se apercebem, mas o Alentejo é a next big thing". Sim, os portugueses apercebem-se da big thing também não são assim tão estúpidos: hoje o Roncão, amanhã Alqueva todo, depois o Alentejo inteiro. Adeus buraco negro no céu da Europa.
Vai começar, então, "A Conquista do Oeste". Eu vi o filme em pequeno, num cinema perto de mim. Infelizmente, já sei como acaba.
P.S. -Na sua crónica no "Público", Helena Matos chamou a atenção para um fait divers, no meio da crise dos céus da Europa, que é eloquente de como funcionam as empresas e serviços públicos, se não o próprio país: com os aviões pousados em terra e milhares de pessoas acorrendo a Santa Apolónia em busca de um lugar num comboio, business as usual na estação. Aparentemente, a CP não organizou comboios extras, mas, pior do que isso, manteve, imperturbável, a mesma única bilheteira da estação a funcionar, perante filas intermináveis de pessoas, crianças incluídas, horas à espera. O espectáculo foi, de facto, intolerável. De incompetência, de desdém, de falta de respeito. E esta é a empresa pública que mais dinheiro custa aos contribuintes.
Miguel Sousa Tavares in Expresso
sábado, 1 de maio de 2010
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