'Temporal' sempre foi
antónimo de 'sagrado'.
Mas a palavra "temporário"
está cada vez mais benta.
Que aborrecida, esta persistente exploração, normalmente com fins humorísticos, da coincidência onomástica entre o treinador do Benfica e o Messias.
Deus me livre de incorrer nessa facilidade preguiçosa.
Além do mais, a comparação de Jorge Jesus com Jesus Cristo é completamente descabida, tendo em conta a dimensão de um e de outro: que importância tem uma mensagem de amor, bondade e perdão quando cotejada com a capacidade de vencer um campeonato com quase 80 golos marcados?
Quase nenhuma, por muito que a bondade, o amor e o perdão tenham vindo a ser sobrevalorizados ao longo dos tempos - por oposição à concretização abundante de golos, que teólogos de todos os tempos e lugares sistematicamente menosprezaram.
Não admira, por isso, que tanta gente tenha ido para a rua celebrar os feitos do Jesus actual e tão pouca esteja, ao que parece, interessada em louvar os daquele outro Jesus, agora menos popular.
Dito isto, a notícia segundo a qual uma empresa de trabalho temporário estava a recrutar pessoas para, durante a visita de Bento XVI a Portugal, apoiarem o Papa, deve ser recebida sem grande surpresa.
A empresa procurava candidatos com, e cito, "muito boa apresentação, gosto de contacto com o público, dinamismo, responsabilidade e resistência física", ou seja, precisamente as características dos apoiantes de Jorge Jesus: todos eles tinham muito boa apresentação, até por envergarem lindas camisolas vermelhas; todos gostavam de contacto com o público, uma vez que estiveram a contactar uns com os outros até de madrugada; todos eram dinâmicos, responsáveis e fisicamente resistentes, porque só se consegue festejar daquela forma com dinamismo, responsabilidade e resistência física, sobretudo no fígado.
O trabalho era pago pela empresa a três euros e meio à hora, o que renderia a cada apoiante cerca de 20 euros - ou seja, mais ou menos o valor que cada um dos fiéis do outro Jesus gastou em cerveja uns dias antes, só na primeira meia hora de festejos.
Mais surpreendente é a perspectiva que a empresa de recrutamento tem sobre o acto de apoiar o Papa. É curioso que o apoio à ideia de vida eterna constitua trabalho temporário.
Não existe, na legislação laboral, o conceito de trabalho eterno - por muito que, em alguns empregos, o dia pareça durar uma eternidade.
Mas é pena. Para trabalho igual, salário igual - diz um slogan.
Para apoio à eternidade, pagamento eterno - deveria dizer outro estribilho do sindicalismo apostólico.
Enquanto a inovação sindical não chega, deve registar-se a inovação semântica: "temporal" sempre foi antónimo de "sagrado".
Mas a palavra "temporário" está cada vez mais benta.
Ricardo Araújo Pereira in Boca do Inferno (Visão)
quinta-feira, 13 de maio de 2010
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Será verdade ?
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