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domingo, 16 de maio de 2010

Os que realmente contam - Alberto Gonçalves

Para uns, o aval de Pedro Passos Coelho às medidas ditas antidéfice do Governo é uma abdicação face à irresponsabilidade do PS. Para outros, é a atitude adequada a um homem preocupado com a estabilidade política e o interesse nacional. Para um terceiro e exótico grupo, o aval é uma estratégia que compromete o eng. Sócrates no futuro imediato e prepara com calma o regresso do PSD ao poder em época de relativa bonança, momento em que o novel líder revelará a sua natureza liberal e nos salvará.

Compreendo que seja fascinante analisar as combustões químicas que ocorrem no cérebro do dr. Passos Coelho, ciência que convoca uma razoável parte da população. Sucede que a parte restante desta, naturalmente menos sofisticada, está mais interessada nos gestos do que nas intenções dos senhores que, directa ou indirectamente, nos tutelam. E os gestos consagrados no grotesco pacote de paliativos apontam todos na mesma direcção: a despesa desce umas migalhas e a receita sobe talvez o suficiente para adiar a bancarrota. A "austeridade" recai, quase inteirinha, nos contribuintes, fora uns "cortes" que não cortam no essencial peso do Estado.

O eng. Sócrates "sempre esteve convencido" de que não aumentaria os impostos. "Com tudo o que aconteceu nos últimos dias", convenceu-se do contrário. Brilhante, não fora o facto de que o que aconteceu nos últimos dias ser uma peculiar forma de desvario iniciado, se quisermos ilibar Cavaco, no momento em que Guterres, o Magnânimo, resolveu abençoar a pátria. Há quinze anos que a pátria assiste impávida à subida dos gastos públicos a título de "investimento" ou benesses "sociais", tendência assaz aprimorada na gestão (digamos) do actual primeiro-ministro. Quando o delírio socialista ameaçou ruir, culpou-se o neoliberalismo (?). Quando o delírio ruiu de vez, culpa-se as agências de rating. Na retórica oficial, a culpa nunca é nossa.

No mundo real, porém, a culpa é nossa, que engolimos felizes as patranhas que nos atiraram e que, através do voto, teimámos em legitimar um quadro partidário unânime na crença das virtudes estatais. Claro que, com variáveis ajudas do PSD, o PS é o principal autor do fosso em que nos encontramos. Mas no CDS a defesa da iniciativa privada é intermitente e, escusado acrescentar, nos dois partidos comunistas é nula. A alternativa ao "mata" é o "esfola", e é lícito supor que a alternativa não existe visto que jamais a desejámos. O Estado sufocante, falido e relapso de que dispomos é aquele com que a maioria sonhou e que a minoria terá, igual e infelizmente, de pagar. Desculpem o cliché e a generalização: temos os políticos e a penúria que merecemos.

Perante isto, o pedido de desculpas do dr. Passos Coelho à nação serve unicamente para fins de anedotário, a que acresce a sua proposta de criar uma entidade pública para avaliar os "cortes" públicos. Desde que chegou a líder da oposição, o dr. Passos Coelho pôde optar entre exercê-la ou, como se constata, alimentar as mentiras do Governo. A primeira escolha seria digna. Qualquer das duas seria inconsequente. Especular sobre se o conluio com o Governo maculou ou garantiu a carreira do dr. Passos Coelho conta pouco porque o dr. Passos Coelho não conta nada. No poço a que descemos, até o eng. Sócrates deixou de contar. Só os portugueses contam: o dinheiro que falta, os dias para o fim do mês e, nas horas vagas, a história de um país que se julgou imune à sua trágica vocação para a asneira

Alberto Gonçalves in Diário de Notícias

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Treinar como Jesus treinou - Ricardo Araújo Pereira

'Temporal' sempre foi
antónimo de 'sagrado'.
Mas a palavra "temporário"
está cada vez mais benta.

Que aborrecida, esta persistente exploração, normalmente com fins humorísticos, da coincidência onomástica entre o treinador do Benfica e o Messias.
Deus me livre de incorrer nessa facilidade preguiçosa.
Além do mais, a comparação de Jorge Jesus com Jesus Cristo é completamente descabida, tendo em conta a dimensão de um e de outro: que importância tem uma mensagem de amor, bondade e perdão quando cotejada com a capacidade de vencer um campeonato com quase 80 golos marcados?
Quase nenhuma, por muito que a bondade, o amor e o perdão tenham vindo a ser sobrevalorizados ao longo dos tempos - por oposição à concretização abundante de golos, que teólogos de todos os tempos e lugares sistematicamente menosprezaram.
Não admira, por isso, que tanta gente tenha ido para a rua celebrar os feitos do Jesus actual e tão pouca esteja, ao que parece, interessada em louvar os daquele outro Jesus, agora menos popular.

Dito isto, a notícia segundo a qual uma empresa de trabalho temporário estava a recrutar pessoas para, durante a visita de Bento XVI a Portugal, apoiarem o Papa, deve ser recebida sem grande surpresa.
A empresa procurava candidatos com, e cito, "muito boa apresentação, gosto de contacto com o público, dinamismo, responsabilidade e resistência física", ou seja, precisamente as características dos apoiantes de Jorge Jesus: todos eles tinham muito boa apresentação, até por envergarem lindas camisolas vermelhas; todos gostavam de contacto com o público, uma vez que estiveram a contactar uns com os outros até de madrugada; todos eram dinâmicos, responsáveis e fisicamente resistentes, porque só se consegue festejar daquela forma com dinamismo, responsabilidade e resistência física, sobretudo no fígado.

O trabalho era pago pela empresa a três euros e meio à hora, o que renderia a cada apoiante cerca de 20 euros - ou seja, mais ou menos o valor que cada um dos fiéis do outro Jesus gastou em cerveja uns dias antes, só na primeira meia hora de festejos.
Mais surpreendente é a perspectiva que a empresa de recrutamento tem sobre o acto de apoiar o Papa. É curioso que o apoio à ideia de vida eterna constitua trabalho temporário.
Não existe, na legislação laboral, o conceito de trabalho eterno - por muito que, em alguns empregos, o dia pareça durar uma eternidade.
Mas é pena. Para trabalho igual, salário igual - diz um slogan.
Para apoio à eternidade, pagamento eterno - deveria dizer outro estribilho do sindicalismo apostólico.
Enquanto a inovação sindical não chega, deve registar-se a inovação semântica: "temporal" sempre foi antónimo de "sagrado".
Mas a palavra "temporário" está cada vez mais benta.

Ricardo Araújo Pereira in Boca do Inferno (Visão)

terça-feira, 11 de maio de 2010

A tolerância para Bento XVI - Pedro Tadeu

Tenho o azar na vida de ser ateu, de não conseguir encontrar motivo para adorar um qualquer criador do universo. Esta é uma declaração prévia de interesses - que neste tipo de situações me parece ser acto de lealdade imperativa perante o leitor - por ir abordar um assunto inevitável: a chegada a Portugal, hoje, do Papa Bento XVI.

Vejo, perplexo, escrito pelos jornais - incluindo aqui no Diário de Notícias - vários artigos de opinião a criticar as autoridades. A crítica mais recorrente tem a ver com a tolerância de ponto...
A estrada mais próxima da minha casa é caminho de peregrinos a Fátima. É impressionante o desfile de milhares, mesmo muitos milhares de pessoas, a pé, a cumprir o para mim incompreensível sacrifício de não sei que promessa. Serão todas estúpidas? Serão todas ignorantes? Serão gente que o Estado deve desprezar?

No fim-de-semana assisti a um casamento. Provavelmente os noivos e a maioria das 250 pessoas que ali estavam só entram numa igreja em momentos deste tipo. Ir aos domingos à missa não faz parte da vida urbana desta gente. Estariam todas aquelas pessoas a fingir a sua religiosidade? Estariam todas a mentir só por conveniência social? Deve o Estado impedir, na prática, que esta população possa, se quiser, ir ver o Papa?

Nas férias costumo passar uns dias numa vila do interior, numa altura coincidente com as festas locais. Para além das febras, do vinho tinto, da música mal tocada, dos namoricos e da maledicência, o que há de mais notável nessas festas é uma procissão. Não há uma única família que não tenha pelo menos um representante nesse desfile religioso. Será uma multidão alucinada? Será uma turba manipulada? Deverá o Estado ignorar que esta mobilização existe?

Não posso aceitar que um Estado democrático aceite ficar ao serviço de uma religião e a favoreça nos impostos, no protocolo ou em qualquer outra benesse que não resulte da compensação directa da actividade social dessa instituição, que beneficia assim o próprio Estado. Mas também não consigo compreender que um Estado se comporte como se os sentimentos dos seus cidadãos, por muito contraditórios que sejam, não existissem.

Achar ser dever do Estado não dar tolerância de ponto nestes dias de visita do Papa é... um sinal de intolerância. É a intolerância contra, por acaso, a maioria dos portugueses, católicos, ou mais ou menos católicos, que pensa e sente o mundo de forma diferente de nós, os portugueses ateus ou mais ou menos ateus. E toda a intolerância é intolerável. Toleremos. Este é o ponto.

Pedro Tadeu in Diário de Notícias

quinta-feira, 6 de maio de 2010

O país mais cristão do mundo - Ricardo Araújo Pereira

No ano de 1143, o Papa Inocêncio II
reconheceu que Portugal era um país.
Oitocentos e sessenta e sete anos depois,
temo que Bento XVI venha cá dizer-nos
que talvez o seu antecessor se tenha precipitado

No ano de 1143, o Papa Inocêncio II reconheceu que Portugal era um país*.
Oitocentos e sessenta e sete anos depois, temo que Bento XVI venha cá dizer-nos que talvez o seu antecessor se tenha precipitado.
O Papa visita Portugal numa altura em que, ao que dizem pessoas versadas em economia, embora contradizendo outras pessoas igualmente versadas em economia, o País está à beira da bancarrota.
É inquietante não perceber se o Papa vem abençoar-nos ou dar-nos a extrema-unção.
Seria demasiado atentatório do protocolo que o Presidente Cavaco Silva tentasse convencer o Santo Padre a devolver-nos aquelas quatro onças de ouro que D. Afonso Henriques começou a pagar anualmente à Santa Sé?
Podia ser uma boa ajuda para sair da crise, mas é provável que o Vaticano já tenha gasto tudo em hóstias e talha dourada.

Portugal pode ao menos aproveitar a visita do Papa para aprender com a Igreja, sobretudo nesta altura em que o País parece condenado a fazer à União Europeia o que a Igreja faz aos fiéis: pedir esmola.
Na verdade, dificilmente haverá país que viva mais de acordo com a lei de Cristo do que Portugal: há anos que os portugueses têm vindo a despojar-se dos bens materiais e a abdicar da riqueza.
Se os países morressem (e não é assim tão certo que o nosso não esteja com os pés para a cova), Portugal seria certamente dos que iriam para o céu.

Para o Papa, visitar Portugal é a decisão mais inteligente que poderia ter tomado.
A Igreja tem sido abalada pelo escândalo de pedofilia, e não haverá nada mais sensato a fazer quando se está envolvido num escândalo do que viajar para um país em que os escândalos são corriqueiros.
De todos os altos dignitários que vai encontrar, Bento XVI deve ser o que está menos atormentado por escândalos.
Portugal é a Brobdingnag dos escândalos. Assim como Gulliver se sente mínimo em Brobdingnag, qualquer escândalo estrangeiro se sente pequenino em Portugal.
O périplo do Papa pelo nosso país será o equivalente a uma pessoa que tem uma pequena nódoa na camisa ir rodear-se de pintores de parede com os fatos-macaco todos sarapintados.
Quem se atreverá a censurar o Papa por comandar uma instituição que só pediu desculpa a Galileu mais de 350 anos depois do seu julgamento quando é essa, precisamente, a duração média de um julgamento em Portugal?
Aqui, qualquer um se sente impoluto.
Deve ser nisso que consiste a nossa celebrada hospitalidade.

Ricardo Araújo Pereira in Boca do Inferno(Visão)

* Mais ano menos ano, mais Papa menos Papa.
Não me chateiem. O rigor histórico atrapalha quem quer trabalhar.

sábado, 1 de maio de 2010

A conquista do Oeste - Miguel Sousa Tavares

De todas as "trapalhadas", como sói chamar-se, em que José Sócrates se meteu ou o meteram, a mais grave, para mim, é a história das casas que ele, enquanto "engenheiro técnico", desenhou em Castelo Branco para os "amigos". Tudo o resto me parece que ou não tem substância ou não terá nunca provas que sustentem as suspeitas. Do Freeport não chegará nunca a ser pronunciado, como sempre previ (e essa será a morte póstuma do "Jornal de Sexta"); do negócio de compra da TVI pela PT só será incriminado se a Comissão Parlamentar de Inquérito chegar, como habitualmente, a conclusões políticas - porque o resto é matéria de pura especulação; e, do curso na Universidade Independente, toda a gente percebeu a história: o curso não era recomendável, mas ele limitou-se, como tantos outros diplomados, a tirar partido da bandalheira em que caiu parte do ensino universitário. Resta o affaire Luís Figo, que é grave na medida em que indicia utilização de dinheiros públicos para fins de propaganda eleitoral partidária. E restam as tais casinhas para os amigos, onde as opções que lhe restaram foram só duas: ou assumir que tinha assinado de cruz os projectos - o que seria muito grave - ou assumir que a autoria daqueles abortos urbanos era mesmo dele. Entre as duas, e como seria de esperar, Sócrates optou pela segunda. Assim sendo, e não havendo razão válida para duvidar, o primeiro-ministro é mesmo o autor daquilo. E isso é deveras preocupante, quando se pensa que ele é, em última análise, o responsável pela política de ordenamento do território, de defesa do ambiente, da paisagem e do património arquitectónico do país. Tanto mais que, tendo ele próprio ocupado a pasta anteriormente, reduziu a meros figurantes os ministros que nomeia para lá.

Escudado nos PIN - uma invenção do seu primeiro governo e um instrumento político que permite fazer tábua rasa de todas as regras de ordenamento, em nome do "interesse nacional" - José Sócrates tem conduzido uma autêntica política de terra queimada em matéria de defesa do património natural do país. Sempre com a desculpa do desemprego, da necessidade de atrair investimento estrangeiro e do desenvolvimento do cluster turístico. Mas, afinal, que outras desculpas poderia haver? Essas desculpas são as ameaças clássicas e é justamente contra elas, e nos bons e nos maus momentos, que se mede a vontade de resistência de um governo aos ataques ao património natural do país. Neste domínio, não há meio-termo: ou se tem uma atitude defesa ou de condescendência. Não dá para variar, conforme a conjuntura, as circunstâncias ou os pretendentes. E os governos de José Sócrates não enganam ninguém: desde o início, antes ainda de a crise ser oficialmente decretada, eles mostraram que estão aí para facilitar tudo o que puderem. Nisso, pelo menos, ninguém pode dizer que foi enganado: esta é a política do Governo, assumida e à vista de todos.

É por isso que esta semana, com pompa e circunstância, José Sócrates foi inaugurar o primeiro pólo de urbanização da orla de Alqueva - cuja capacidade de construção turística ele subiu de 400 para 22 000 camas e pronto a alargar mais ainda, à medida que as pretensões forem chegando. Claro que o discurso é o mesmo de sempre: será um "turismo sustentado", de "qualidade", que evitará erros anteriores e "nada terá que ver com o Algarve". Isto é dito com a maior das canduras, ao mesmo tempo que o Algarve se vai alegremente repetindo a si próprio: nos últimos dez anos perdeu dois milhões de turistas mas tem já mais cem hotéis e trinta golfes aprovados, numa insana estratégia de fuga em frente que só pode (aliás, merece) acabar mal. Mas, entretanto, o Algarve vai cumprindo politicamente o seu papel de mau exemplo útil para justificar os "bons exemplos" que agora se pretendem lançar na costa alentejana, em Alqueva e no pouco mais que ainda resta por estragar.

Sócrates foi, pois, inaugurar as obras de uma coisa pomposamente chamada "Roncão d'El Rey" (é conhecida a apetência dos promotores turísticos pelas denominações retro-grandioso-pirosas, sobretudo envolvendo as palavras "rey" ou "real" e os acrescentos em inglês técnico-turístico: Beach and Spa Resort, Golf and Spa Residences, Lake Marina Spa Villas, etc., coisa fina para impressionar comendadores do Vale do Ave). O "Roncão d'El Rey", do empresário José Roquete, aproveita a mais extraordinária oportunidade de negócio (ou "sinergias", como gostam de dizer) acontecida em Portugal nas últimas décadas: a construção da barragem de Alqueva. Destinada, relembro, a três fins: agricultura, produção de energia e reserva estratégica de água; nunca, jamais, como nos garantiram então, a dar água a aldeamentos turísticos ou regar campos de golfe. Alqueva foi financiado pelo esforço dos contribuintes portugueses e comunitários e, graças a ele, nasceu ali, nas terras áridas e sem valor algum do sequeiro alentejano, o maior lago artificial da Europa. De um momento para o outro, aquelas terras passaram a valer cinquenta ou cem vezes mais e a grande maioria dos potenciais beneficiados - os tais agricultores que gritavam "construam-me, porra!" - correram a vender as suas terras aos espanhóis ou outros estrangeiros. Nisso, Roquete tem mais mérito: ficou e investiu e agora tem um lago oferecido a seus pés, para o Roncão d'El Rey. Se você pertence ao número dos que pagam mesmo impostos, pode considerar que um rincãozinho do Rincão, e do mais que se seguirá, também é seu.

Um senhor americano, chamado Len Silverfine, especialista em "marketing estratégico", está encarregado da promoção do projecto e está confessadamente entusiasmado, como qualquer um estaria no lugar dele. Primeiro, começou por vender a uma imprensa acrítica as mesmas fábulas de sempre, sobre a "integração do projecto no ambiente e na comunidade" (?!) ou a criação de "2000 postos de trabalho directos e 3000 indirectos" (já alguém, alguma vez, se deu ao trabalho de ir verificar a concretização destes fantásticos números sempre atirados para o ar para impressionar o engº Sócrates?). Depois, divide simpaticamente connosco a revelação de que "o Alentejo é a última zona virgem da Europa... a única zona completamente negra à noite". Aquilo, diz ele, "é como o Oeste para os americanos: tem o mesmo romantismo". Ah, mas descansem que a virgem romântica está prestes a ser libertada: "Agora, diz o sr. Silverfine, temos este lago imenso que nos abre possibilidades que nunca estiveram lá". Comecemos, então, pelo Roncão: dois mil hectares, sete hotéis, quatro campos de golfe (porque os turistas aborrecem-se de jogar sempre no mesmo), aldeamentos turísticos, duas marinas, centro equestre e um campo de férias. O senhor Silverfine, a nossa bala de prata, não tem dúvidas e deixa-nos mais uma fantástica revelação: "os portugueses não se apercebem, mas o Alentejo é a next big thing". Sim, os portugueses apercebem-se da big thing também não são assim tão estúpidos: hoje o Roncão, amanhã Alqueva todo, depois o Alentejo inteiro. Adeus buraco negro no céu da Europa.

Vai começar, então, "A Conquista do Oeste". Eu vi o filme em pequeno, num cinema perto de mim. Infelizmente, já sei como acaba.

P.S. -Na sua crónica no "Público", Helena Matos chamou a atenção para um fait divers, no meio da crise dos céus da Europa, que é eloquente de como funcionam as empresas e serviços públicos, se não o próprio país: com os aviões pousados em terra e milhares de pessoas acorrendo a Santa Apolónia em busca de um lugar num comboio, business as usual na estação. Aparentemente, a CP não organizou comboios extras, mas, pior do que isso, manteve, imperturbável, a mesma única bilheteira da estação a funcionar, perante filas intermináveis de pessoas, crianças incluídas, horas à espera. O espectáculo foi, de facto, intolerável. De incompetência, de desdém, de falta de respeito. E esta é a empresa pública que mais dinheiro custa aos contribuintes.

Miguel Sousa Tavares in Expresso

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Subsídios para a perplexidade - Fernanda Câncio

Não sendo economista nem tendo especial queda para os números, tenho pejo em falar de questões com eles relacionados. Mas, precisamente por isso, gosto que quem fala fundamente o que propõe ou decide. Assim, quando vejo o primeiro-ministro e o líder do principal partido da oposição, depois de reunidos para discutir a situação difícil do País e, presumo, formas de dela sair, perfilarem-se para anunciar a aplicação imediata do PEC mencionando com especial ênfase a alteração das regras do subsídio de desemprego, espero que me digam, de imediato, em que é que isso diminui o défice ou contribui para alterar a situação da dívida externa.

Espero ainda - ou melhor, exijo - que me façam perceber por que raio, no universo das medidas do PEC, o destaque na reacção de Portugal à avaliação desfavorável de uma empresa de rating consiste no anúncio da diminuição dos montantes do subsídio de desemprego - alegando que com isso se pretende certificar que ninguém ganhe mais com o subsídio que o que ganhava com o salário - e da obrigatoriedade imposta aos seus beneficiários de que aceitem empregos com salário 10% superior ao valor de subsídio auferido. E exijo-o tanto mais quanto as regras existentes desde 2006 para atribuição e manutenção do subsídio de desemprego não só estabelecem como montante máximo para o mesmo três salários mínimos, pagos 12 meses/ano - ou seja, qualquer que tenha sido o valor do salário auferido e das decorrentes prestações para a Segurança Social, o desempregado só pode receber até cerca de 1500 euros/mês -, como já é interdito existir um subsídio de desemprego superior ao valor líquido da remuneração de referência (número 3 do 29.º artigo da lei 220/2006). Aliás, o subsídio de desemprego é sempre 65% da remuneração de referência, calculada a partir do total de remunerações registadas no ano que antecede o desemprego. E os beneficiários do subsídio são já obrigados a, além de fazerem prova documental de "procurar activamente trabalho" e de se apresentarem quinzenalmente no centro de emprego (qualquer incumprimento tem de ser justificado com um mês de antecedência), aceitar um emprego que lhes garanta um salário ilíquido 25% superior ao subsídio de desemprego (se a oferta ocorrer durante os primeiros seis meses da prestação do subsídio) ou 10% (a partir do sétimo mês). São até, pasme-se, obrigados a aceitar "trabalho socialmente necessário".

Temos pois, parece, uma lei já suficientemente draconiana - tanto que é difícil distinguir o proposto do que está em vigor. De modo que, e volto a perguntar, que foi mesmo este anúncio e serviu para quê?

Fernanda Câncio in Diário de Notícias

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Este país não é para corruptos - Ricardo Araújo Pereira

Em Portugal, há que ser
especialmente talentoso para corromper.
Não é corrupto quem quer.

Portugal é um país em salmoura.
Ora aqui está um lindo decassílabo que só por distracção dos nossos poetas não integra um soneto que cante o nosso país como ele merece.
"Vós sois o sal da terra", disse Jesus dos pregadores.
Na altura de Cristo não era ainda conhecido o efeito do sal na hipertensão, e portanto foi com o sal que o Messias comparou os pregadores quando quis dizer que eles impediam a corrupção.
Se há 2 mil anos os médicos soubessem o que sabem hoje, talvez Jesus tivesse dito que os pregadores eram a arca frigorífica da terra, ou a pasteurização da terra.
Mas, por muito que hoje lamentemos que a palavra "pasteurização" não conste do Novo Testamento, a referência ao sal como obstáculo à corrupção é, para os portugueses do ano 2010, muito mais feliz.
E isto porque, como já deixei dito atrás com alguma elevação estilística, Portugal é um país em salmoura: aqui não entra a corrupção - e a verdade é que andamos todos hipertensos.

Que Portugal é um país livre de corrupção sabe toda a gente que tenha lido a notícia da absolvição de Domingos Névoa.
O tribunal deu como provado que o arguido tinha oferecido 200 mil euros para que um titular de cargo político lhe fizesse um favor, mas absolveu-o por considerar que o político não tinha os poderes necessários para responder ao pedido.
Ou seja, foi oferecido um suborno, mas a um destinatário inadequado.
E, para o tribunal, quem tenta corromper a pessoa errada não é corrupto - é só parvo.
A sentença, infelizmente, não esclarece se o raciocínio é válido para outros crimes: se, por exemplo, quem tenta assassinar a pessoa errada não é assassino, mas apenas incompetente; ou se quem tenta assaltar o banco errado não é ladrão, mas sim distraído.
Neste último caso a prática de irregularidades é extraordinariamente difícil, uma vez que mesmo quem assalta o banco certo só é ladrão se não for administrador.

O hipotético suborno de Domingos Névoa estava ferido de irregularidade, e por isso não podia aspirar a receber o nobre título de suborno.
O que se passou foi, no fundo, uma ilegalidade ilegal.
O que, surpreendentemente, é legal.
Significa isto que, em Portugal, há que ser especialmente talentoso para corromper.
Não é corrupto quem quer.
É preciso saber fazer as coisas bem feitas e seguir a tramitação apropriada.
Não é acto que se pratique à balda, caso contrário o tribunal rejeita as pretensões do candidato. "Tenha paciência", dizem os juízes. "Tente outra vez. Isto não é corrupção que se apresente."

Ricardo Araújo Pereira in Boca do Inferno (Visão)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Eis o flagelo do Eyjafjalla - Ricardo Araújo Pereira

Será que um islandês vendado escreve correctamente "Carrazeda de Ansiães" no seu computador?
Que reflexão merece a erupção do vulcão Eyjafjalla, situado em Eyjafjallajokull? Primeiro, uma constatação linguística: aquilo que, para nós, é escrever letras à balda no teclado, para os islandeses é toponímia. Eyjafjallajokull é o tipo de palavra que aparece se eu fechar os olhos e carregar aleatoriamente em teclas. Na Islândia, é um sítio. Será que um islandês vendado escreve correctamente "Carrazeda de Ansiães" no seu computador? Não sei, e a comunicação social parece mais interessada em seguir o rasto às nuvens de cinza do que em falar das questões que verdadeiramente interessam, como esta.

Outro problema importante é o de investigar o modo como um amante da natureza deve olhar para o vulcão. Não faz especial sentido que uma pessoa que sofre pela extinção do lince da Malcata se alegre com a extinção do Eyjafjalla. Não é verdade que o Eyjafjalla é tão natural como o lince? Um vulcão é uma espécie de borbulha do planeta. Desenvolve-se e fermenta silenciosamente até esguichar um doloroso pus (espero não estar a ser demasiado técnico). Mas faz parte da natureza como um carvalho ou um golfinho. A única diferença é que os vulcões estão para a natureza como os convidados bêbados estão para uma festa. O anfitrião, como o amante da natureza, quer ter a mesma gentileza para com todos os convidados, mas há um que entorna coisas e apalpa senhoras. É o vulcão. Por isso, querendo ou não, todos nós sabemos, no íntimo, que há natureza de primeira e natureza de segunda: uma que deve ser protegida e apreciada e outra que é simplesmente desagradável. No entanto, por vezes cometem-se injustiças - e eu estou particularmente atento ao facto de, na natureza, haver filhos e enteados. É uma observação que faço amiúde na qualidade de amante da natureza mas, principalmente, na de apreciador de caracóis. Muitas vezes estou a desfrutar de um pires de caracóis e percebo o olhar de repugnância que alguém me dirige. E, quase sempre, não tem a ver com o barulho repenicado que faço a tirar o bicho da casca, mas simplesmente com o facto de eu estar a comer caracóis. O mais interessante é que, na esmagadora maioria dos casos, quem me censura por comer caracóis bebe leite e come ovos. O leite, recordo, é uma gosma produzida no interior de uma vaca, e os ovos são - não há como negá-lo - a menstruação da galinha. É impressionante a hipocrisia destes moralistas da nutrição. Mas, ultrapassada esta lógica e inevitável digressão pelo tema dos caracóis, voltemos à questão do vulcão.

Se há pensamento que deve alegrar-nos, nesta altura, é este: Portugal foi poupado aos mais violentos fenómenos naturais. Não somos arrasados por tornados, nem devastados por tsunamis. Não temos vulcões que nos aflijam nem avalanchas que nos soterrem. A natureza não tem culpa nenhuma de que Portugal esteja como está. É certo que, volta e meia, aparecem umas chuvas mais abundantes e, lá de longe em longe, um terramoto. Mas em geral o nosso clima é ameno e simpático, por muito que a comunicação social se esforce para descobrir desastres naturais em qualquer rabanada de vento. Ainda na semana passada, a fazer fé nos jornais, houve um minitufão no Algarve e outro em Lisboa. Na impossibilidade de sermos visitados por tufões, temos minitufões. Note-se que a expressão "minitufão" nem sequer faz sentido. Não há, por exemplo, microgigantes. Um minitufão é, na verdade, um tufinho. Na semana passada Portugal foi, portanto, assolado por dois tufinhos. Não é especialmente assustador.

Ricardo Araújo Pereira in Boca do Inferno (Visão)

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Sair do altar de marfim - Ferreira Fernandes

A frase do cardeal Bertone ("há uma relação entre homossexualidade e pedofilia") lá obrigou a Igreja Católica a voltar àquele que parece ser agora o seu desporto preferido: explicar o que disse.
O cardeal falava só dos padres pedófilos e, nestes, a homossexualidade estaria mais relacionada com a prática do crime do que o celibato.
É discutível, mas, dito assim, retira à frase aquela abusiva ligação directa "homossexualidade-pedofilia".

Antes, fora a frase do pregador da Casa Pontifícia que comparou as acusações de pedofilia da Igreja com as perseguições aos judeus.
A inevitável explicação também veio: o pregador citava a carta de um amigo judeu.
Este exercício "o que eu disse, mesmo, foi..." há-de continuar porque, entre outras razões, não é impunemente que se passam tantos séculos a falar sem precisar de dar explicações terrenas. Uma organização que se permite, com toda a coerência da sua estrutura de pensamento, dizer que alguém é infalível estar agora a explicar-se todos os dias poderá parecer que fraqueja.

Mas, de facto, é hoje, e não ontem quando não estava para se questionar, que a Igreja Católica está a fazer uma notável prova de vida.
E ser Bento XVI, o "doutrinário", a abrir-se ao mundo não é a menor das surpresas.

Ferreira Fernandes in Um ponto é tudo ( Diário de Notícias)

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Do laico arcaico - Fernanda Câncio

Viver num Estado laico significa uma coisa muito simples, aliás explicitada pelo primeiro-ministro há um mês, em declarações aquando da cerimónia dos 25 anos da mesquita de Lisboa: "Um princípio fundamental na acção do Governo é o respeito absoluto pela liberdade religiosa e pela neutralidade do Estado face à crença religiosa de cada cidadão." Traduzindo, o Estado laico não se mete em assuntos religiosos.

Sucede que este se mete, e muito. A maior parte das pessoas talvez nunca tenha reparado que o Estado português "reconhece" confissões. A lei da liberdade religiosa, de 2001, estabelece que só confissões radicadas (estruturadas no território nacional há mais de 30 anos ou "no estrangeiro" há mais de 60) ou "inscritas" beneficiam de devolução do IVA e podem ser incluídas na listagem das entidades beneficiárias da consignação de 0,5% do IRS dos contribuintes e isentas de pagamento de IMI no que respeita a edifícios de culto, aceder ao contingente de professores de Religião e Moral, participar na Comissão de Liberdade Religiosa e celebrar casamentos com efeitos civis. Acresce que mesmo entre as confissões reconhecidas o Estado estabelece distinções. Há a Igreja Católica (IC) e há "as outras". E de tal modo assim é que com esta, na sua forma "estatal" - esse "país" chamado Vaticano, ou, para quem creia, "Santa Sé"-, o Estado até faz tratados. Que consistem em duas coisas: assumir os seus próprios cidadãos como súbditos do outro Estado e atribuir, em consonância, privilégios aos respectivos representantes.

De acordo com esta visão tão neutral "das crenças religiosas de cada cidadão" e apesar de uma Constituição que desde 1976 estabelece a separação rigorosa, o Estado mantém símbolos religiosos católicos nas escolas públicas - manutenção que o primeiro Governo de maioria socialista reiterou, desmentindo, logo em 2005, qualquer intenção de os retirar -, atribui nomes católicos a equipamentos (incluindo os que são só projecto, como o futuro hospital lisboeta "De Todos os Santos"), assegura o monopólio da assistência religiosa paga aos católicos (remoçado, ainda que sob disfarce, numa lei de Setembro de 2009) e concede tempo de antena nos media públicos, com dignidade de representantes do Estado, a dignitários católicos.

A atribuição de tolerância de ponto aos funcionários públicos aquando da visita do Papa, que de acordo com notícias publicadas em Março foi "negociada" com a hierarquia da IC portuguesa, é pois apenas mais uma manifestação da peculiar noção que o Estado português - e neste caso o Governo em funções (como de resto a generalidade dos partidos, à excepção tímida do BE) - tem do que significam "princípios fundamentais": é conforme calha. Desta vez, logo por azar (ou sorte?) calhou no ano do centenário da República. Deus não dorme.

Fernanda Câncio in Diário de Notícias

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Mais um escândalo para a colecção - Ricardo Araújo Pereira

Quem dera ao PSD que cada novo líder
revigorasse o partido
como cada novo escândalo
parece fazer rejuvenescer José Sócrates.

Dois acontecimentos recentes prometem devolver à vida política portuguesa uma certa dignidade que lhe vinha faltando: o PSD tem um novo líder e José Sócrates tem um novo escândalo.
Estão reunidas condições para que os dois maiores partidos portugueses ganhem um novo alento.
Os socialistas talvez tenham mais sorte que os sociais-democratas.
Quem dera ao PSD que cada novo líder revigorasse o partido como cada novo escândalo parece fazer rejuvenescer José Sócrates.

Este último tem aspectos encantadores, como o facto de, segundo o primeiro-ministro, os projectos daqueles edifícios terem sido elaborados a título gracioso.
Sendo, ao que parece, ilegal, é ainda assim um trabalho que recomenda José Sócrates para o cargo de primeiro-ministro: eis um homem que se empenha em resolver gratuitamente o problema da habitação.
Mas já custa a perceber que o engenheiro que ajudou a fazer aquelas casas tenha posteriormente sido, sem remorsos, ministro do Ambiente.

Parafraseando um pensamento célebre de José Sócrates, está para nascer o primeiro-ministro que consiga desenvencilhar-se de mais sarilhos do que este.
Ficamos com a sensação de que, se Sócrates viajasse no avião do Presidente da Polónia, sairia do meio da fuselagem fumegante a sacudir a fuligem do fato e a redigir um comunicado jocoso dirigido aos jornais, em que negava que o avião tivesse caído.
E a fumar, provavelmente, uma vez que não costuma dispensar o cigarro a bordo de aeronaves.

Tendo em conta a quantidade (e a qualidade, não sejamos injustos) dos escândalos, parece impossível que não tenha havido ainda um empresário disposto a explorar a afeição dos consumidores pelo coleccionismo que transformasse os escândalos do décimo sétimo e do décimo oitavo governos constitucionais numa caderneta de cromos.
A inexistência de um álbum que reúna todos os imbróglios aos quais o nome de José Sócrates aparece associado é uma das marcas da debilidade criativa da nossa iniciativa privada.
A caderneta teria uma secção sobre o escândalo Freeport, com as fotos de Charles Smith, do primo que está na China e do tio que vive em Portugal; outra secção dedicada ao escândalo da Universidade Independente, com um daqueles cromos panorâmicos da fachada da universidade, uma fotografia do professor de Inglês Técnico e um cromo do diploma com data de domingo; ainda outra página sobre o escândalo PT/TVI, com cromos de Rui Pedro Soares, Armando Vara e, evidentemente, Luís Figo - que, numa demonstração de grandeza apreciável, faria o pleno das cadernetas de cromos.
E assim sucessivamente.
Escândalos de Portugal - Uma Caderneta de Cromos.
O Planeta Agostini que fale comigo, a ver se não enriquecemos todos.

Ricardo Araújo Pereira in A Boca do Inferno ( Visão)

Ver a fama aos quadradinhos - Ferreira Fernandes

É um percurso inverso ao de Barata-Moura mas também interessante, o que José Mourinho está a fazer. Jovem e de viola, o cantor infantil José Barata-Moura ficou-nos na memória no que esta tem de mais fácil, o trauteio: "Come a papa/ Joana come a papa..."
Depois, fez uma carreira mais agreste, talvez. Filósofo, reitor da Universidade de Lisboa, autor de títulos sem rima (Ontologias da Práxis e Idealismos, por exemplo).

Já José Mourinho começou pelo caminho rude da liderança de homens, a que juntou a secura da ciência aplicada (táctica do losango e coisas assim), para vir agora a desaguar na banda desenhada.
Já não José Mourinho mas Grande Mou - que aquilo de falar em balões exige nomes sonantes (Tintim, Rantanplan...) -, o treinador de futebol atinge comprovadamente a glória ao emparceirar com o Pato Donald numa colecção da Disney, em Itália.

É verdade que outros do futebol também entram nas historietas (há um Quaquà, um Kaká em história de patos), mas o big, il grande, é ele, Mou. Revolucionário, como na vida real, Mou inventa novos sistemas: "Já não 11 contra 11 em 90 minutos, mas 90 contra 90 em 11 minutos."

Todos os grande homens têm o seu violino d'Ingres, mas surpreende-me que o de Mourinho não seja a ópera. Ele, que tanto treinou para prima donna.

Ferreira Fernandes in Um ponto é tudo ( Diário de Notícias)

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Vamos limpar umas massas - Ferreira Fernandes

A empresa, com licença para transporte de lixo, foi paga por outra empresa para levar lixo para o aterro sanitário.
Estávamos nas vésperas do Vamos Limpar Portugal, o dia (20 de Março) em que uns benévolos decidiram andar por montes e vales a tornar-nos civilizados à vista.
Então, a tal empresa de transporte de lixo (ela vai dizer que é "de gestão ambiental", que nisso de títulos fazemos questão) viu na generosidade dos outros uma boa oportunidade.
Pegou nas dez toneladas de lixo e distribuiu-as pelas serras de Freita e de Mansores, concelho de Arouca - destinos que ficavam mais em conta do que chegar ao tal aterro sanitário.
E, assim como assim, dias mais tarde, os tansos que suavam à borla deixariam o País num brinquinho...

Eu acho esta história tranquilizadora. Se houvesse uma Fitch para o lixo - vocês sabem, uma daquelas agências de rating que classificam o risco das nossas finanças públicas, mas esta dedicada à nossa cara lavada - não nos daria um AAA, ao nível de Singapura ou Suíça, onde se multa por deitar uma beata para o chão.
Mas, graças à empresa de Arouca, ficaríamos aí com um CCC, de pessoas sem vergonha na cara, mas já com um bichinho ecológico na consciência: a gente suja mas só quando sabemos que uns palermas vêm limpar. Acreditem, já é um progresso.

Ferreira Fernandes in Um ponto é tudo ( Diário de Notícias)

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Meu Deus! Meu Messi! - Ferreira Fernandes

Ontem soube-se, de vez, quem é o segundo maior futebolista de sempre: Lionel Messi.
Acima, só Fred Astaire e o seu celebérrimo toque genial: saltar para as costas de um sofá, deixar este cair lentamente e sair do malabarismo com toda a elegância.
Mas isso foi nos tempos em que o futebol era a preto e branco, os regulamentos modernos da FIFA não permitindo hoje a entrada de sofás em campo.
Tirando Astaire, é Messi e nem falo dos seus quatro golos de ontem.
Falo dele a aproximar-se de um colega caído no chão - o árbitro apitara falta a favor do Barcelona.
Como mirone em lugar de acidente, Messi junta-se à multidão que por ali estacionava.
Estavam todos ocupados com o trivial e vê-se o argentino a ser atingido por um raio cósmico e a dar a bola de bandeja a outro colega.
Este não marcou porque se sobressaltou com a dança de São Vito de Messi, tal como todos em Camp Nou, os telespectadores e o cameraman.
Fosse um acidente de estrada a sério e Messi teria fugido, tem cara para isso, com a carteira de um dos feridos.
No relvado, ele conduz-nos à mesma exclamação: "Não é possível!" Mas é.
Ao lado dele, joga um rapaz chamado Xavi que teria lugar em qualquer equipa do mundo.
Mas ao ver a dupla Messi-Xavi ficamos com a sensação de que a dupla Messi-Medina Carreira também faria um Barcelona optimista.

Ferreira Fernandes - Um ponto é tudo ( Diário de Notícias)

terça-feira, 6 de abril de 2010

Indiferentes a José Sócrates - Pedro Tadeu

Faz-me impressão as casas com assinatura do engenheiro-técnico José Sócrates serem, pelo que vi ontem no Público, sistematicamente medonhas. Como pode o autor desta sustentada poluição visual ter chegado a ministro do Ambiente?

Faz-me impressão o generoso José Sócrates - à época presidente da concelhia do PS na Covilhã, líder da federação do partido em Castelo Branco e deputado eleito pelo distrito - alegar em sua defesa ter elaborado estas 21 pérolas da engenharia civil beirã a pedido de amigos, sem receber um tostão… Como se assinar projectos "por cunha" e, pelo que parece ser sugerido, "de cruz", fosse actividade isenta de crítica e totalmente insuspeita!

Faz-me impressão o primeiro- -ministro José Sócrates insistir em atirar-se ao jornalismo: as notícias sobre a tentativa de controlo da comunicação social são "mau jornalismo". As notícias sobre o que fez ou não fez no Freeport são "mau jornalismo". As notícias sobre a licenciatura na Universidade Independente são "mau jornalismo". As notícias sobre a compra da casa onde vive são "mau jornalismo". As notícias sobre as obras como engenheiro-técnico são "mau jornalismo".
O que será, afinal, "bom jornalismo" para Sócrates? As notícias sobre fraudes na compra de submarinos, no tempo do Governo Durão e Portas?

Faz-me impressão ter a Câmara da Guarda negado aos jornalistas o acesso aos seus arquivos. E faz-me ainda mais impressão os tribunais demorarem três anos a decidir o indiscutível direito da comunicação social a ter acesso a documentos oficiais de uma simples autarquia, produzidos na longínqua década de 80.

Mas, contraditoriamente, faz-me impressão ser possível ter mais do que uma interpretação jurídica sobre uma legislação aparentemente simples, de 1985, que define os limites do regime de exclusividade do deputado. Então não é claro, lendo a dita lei, ao contrário do que escreve o Público, que o deputado abrangido por essa exclusividade pode fazer, na sua "vida civil", o que lhe apetecer, desde que não cobre dinheiro? Para aquele jornal e, imagino, para os juristas politizados que nas próximas semanas ouviremos dissertar sobre o tema, pode ser que sim e pode ser que não… Como sempre, não há leis claras em Portugal!

Tudo isto me faz impressão, mas, pelos vistos, não impressiona os leitores. A maioria segue a sua vida, às vezes protestando, é certo, mas sem mudar o sentido de voto, como se vê pelas eleições ou pelas sondagens… Compram é menos jornais

Pedro Tadeu in Diário de Notícias

segunda-feira, 5 de abril de 2010

O salário de António Mexia - Ferreira Fernandes

António José Seguro, do PS, e Mira Amaral, do PSD, dizem que o salário de António Mexia é "obsceno" e "chocante".
Em 2009, António Mexia, CEO da EDP, ganhou 3,1 milhões de euros.
Para percebermos melhor, 8500 euros por dia.
Se Mexia fosse pago por um patrão, que lhe dera os milhões porque gostava dos seus lindos olhos, ninguém teria nada com isso.
Mas a EDP é uma empresa de capitais mistos. De nós todos, em parte.
E salários assim não são fruto das leis do mercado, mas duma combinação entre alguns.

Há uns anos, expliquei-o numa crónica sobre um caso que também metia Mexia.
Quando este era presidente da empresa, em 2002, um quadro superior entrou para a Galp, de capitais maioritariamente públicos.
Dois anos depois, esse quadro saiu como um indemnização de 290 mil euros.
Não, não foi despedido, saiu pelo seu pé e porque tinha emprego melhor na Refer, onde o meteu Mexia, entretanto ministro dos Transportes.
Se saiu porque quis, qual a razão da indemnização?
Esta: os administradores que lhe pagaram da Galp (com o nosso dinheiro), fizeram-no por cobiça a prazo: era um abuso que, um dia, também eles esperavam vir a beneficiar...

É essa cultura de combinação entre alguns que leva ao salário mirabolante que começou esta crónica.
Seguro, do PS, e Mira Amaral, do PSD, não sabem quem pode resolver isto?

Ferreira Fernandes - Um ponto é tudo ( Diário de Notícias)

sexta-feira, 26 de março de 2010

Meias tintas para coisa séria - Ferreira Fernandes

O filme Estado de Guerra, com vários Óscares, explica-nos (mas julgo que essa não era a intenção da realizadora) a maior das razões para a Guerra do Iraque se ter deixado arrastar.
O filme conta o quotidiano de uma equipa de minas americana em Bagdade.
O trabalho dela é desarmadilhar as bombas que os terroristas espalham na cidade.
Às dificuldades próprias daquele trabalho infernal junta-se um certo espírito dos combatentes americanos que inibe o sucesso.

O filme abre com a morte do chefe da equipa quando um comerciante, mirone da acção de neutralizar uma bomba, a acciona por telemóvel.
Dias depois, a mesma equipa, com novo chefe, está a desarmadilhar bombas num carro perto de uma escola.
Deve ser uma tensão terrível estar debruçado sobre a morte, dependente de um pequenino gesto errado.
Pois a equipa, além das bombas, passa minutos preocupada com um barbudo que, de uma varanda, filma e telefona (ver a cena inicial...), apesar dos gestos que os soldados lhe fazem.
Só gestos, não um tiro.

Esquisita é a guerra - e perdedora - quando não se assume como guerra.
Pareceu-me ver o filme, ontem, na discussão do PEC no Parlamento.
A equipa - Governo e oposição - que quer desarmadilhar a crise, ainda não percebeu que o que tem de ser feito, tem de ser feito.
Na guerra não se brinca.

Ferreira Fernandes in Um ponto é tudo ( Diário de Notícias)

quinta-feira, 25 de março de 2010

Acerca de repercussão política de rabos e recibos verdes - Ricardo Araújo Pereira

Esta pode ser a geração dos 500 euros
porque quem lhe estabelece o ordenado
é a geração rasca.

Um dia, num protesto contra a política educativa do Governo, um cidadão da minha idade resolveu avançar com um argumento de autoridade e mostrou o rabo à ministra.
Não é, de todo, o pior e mais deselegante argumento que já vi esgrimir (se se pode dizer de um rabo que foi esgrimido) no âmbito de um debate político, mas ainda assim o gesto fez com que aquilo a que se chama "a minha geração" passasse a ser conhecida por "geração rasca".
Nunca me queixei. Pelo menos no que me dizia respeito, o título pareceu-me adequado à minha personalidade, e não gosto de censurar ninguém por ser perspicaz.
Hoje, a geração que entra no mercado de trabalho é conhecida por "geração dos 500 euros".
O que definia a minha geração era o seu carácter; o que define esta é o seu salário.
Na verdade, há uma hipótese inquietante: é possível que quem paga a esta geração seja a minha.
Esta pode ser a geração dos 500 euros, porque quem lhe estabelece o ordenado é a geração rasca.
Tudo aponta para isso: somos mais velhos do que eles, e portanto é lógico que tenhamos cargos de chefia quando eles saem da escola.
E é próprio de um patrão rasca generalizar o pagamento de salários de 500 euros.
Sobretudo, é improvável que a "geração rasca" e a "geração dos 500 euros" coincidam: quem é rasca, em princípio arranja sempre maneira de ganhar mais de 500 euros.

Como costuma dizer normalmente quem tem muito dinheiro, o dinheiro não é importante. Sempre me comoveu que as pessoas ricas tivessem a gentileza de partilhar connosco (logo elas, que são tantas vezes avessas a partilhar) uma ideia formada com conhecimento de causa: o dinheiro não traz felicidade.
Essa é, no entanto, uma das características que eu mais aprecio no dinheiro: a felicidade é tão fugaz, tão frágil e, às vezes, tão imoral, que acaba por ser higiénico e nobre que o dinheiro não a traga.
Para falar com franqueza, não conheço nada que traga felicidade.
Mas - chamem-me sentimental - acho que o dinheiro não traz felicidade de uma maneira especial.
Vendo bem, a minha geração teve bastante mais sorte do que esta: uma pessoa pode mudar o seu carácter, mas na esmagadora maioria das vezes não pode mudar o seu salário.
É bem mais fácil deixar de mostrar o rabo do que passar a ganhar mais de 500 euros.

Ricardo Araújo Pereira in Boca do Inferno ( Visão)

segunda-feira, 22 de março de 2010

Há tons que só pedem isto: não! - Ferreira Fernandes

Foi na sexta-feira, mas só ontem vi o vídeo.
Parlamento, discutia-se Educação e o presidente Jaime Gama anuncia o orador: "Senhor secretário de Estado da Educação, João Trocado."
O governante, nervoso, começa a falar sentado, mas levanta-se: "Senhoras deputadas... Senhores deputados..."
Jaime Gama, ríspido, atalha: "Tem de se levantar e a fórmula é: senhor presidente, senhores deputados..."
O orador retoma, atrapalhado: "Senhoras deputadas, senhores deputados..."
Gama, ainda mais ríspido: "Não, não: senhor presidente, senhores deputados..."
O outro: "Senhor presidente, senhores deputados..."
Gama, que parece não ter ouvido: "Não, não, não lhe dou a palavra, tem de usar a fórmula regimental..."
Era clara a vontade do secretário de Estado em aceitar as regras da casa; e, do outro lado, pelo tom e insistência, clara a prepotência nos píncaros da tribuna.
No Parlamento, o lugar dos homens iguais.
Eu, se fosse o secretário de Estado, teria dito: "Senhor presidente, não me chamo João Trocado mas João Torcato da Mata.
E, já agora, não sou secretário de Estado, sou ex-secretário de Estado porque não quero comprometer o Governo no que lhe vou dizer: não admito que me fale assim."
E saía porta fora.
E se essa atitude acabava uma carreira política é porque, então, não vale a pena fazer política.

Ferreira Fernandes in Um ponto é tudo( Diário de Notícias)

sábado, 20 de março de 2010

Estou farto de salvar a Pátria - Henrique Monteiro

Quando comecei a trabalhar, a pátria precisava de ser salva dos desvarios do PREC e por isso pagámos mais impostos.
Depois, nos anos 80, houve um choque petrolífero, salvo erro, e tivemos de voltar a salvar a pátria.
Veio o FMI, ficámos sem um mês de salário e pagámos mais impostos.
Mais tarde, nos anos 90, houve mais uns problemas e lá voltámos a pagar mais, para a pátria não se afundar.
Por alturas do Governo de Guterres fui declarado 'rico' e perdi benefícios fiscais que eram, até então, universais, como o abono de família.
Nessa altura, escrevi uma crónica a dizer que estava a ficar pobre de ser 'rico'...
Depois, veio o Governo de Durão Barroso, com a drª Manuela Ferreira Leite, e lembraram-se de algo novo para salvar a pátria: aumentar os impostos!
Seguiu-se o engº Sócrates, também depois de uma bem-sucedida campanha (como a do dr. Barroso) a dizer que não aumentaria os impostos.
Mas, compungido e triste e, claro, para salvar a pátria, aumentou-os!
Depois de uma grande vitória que os ministros todos comemoraram, por conseguirem reequilibrar o défice do Estado, o engº Sócrates vê-se obrigado a salvar a pátria e eu volto a ser requisitado para abrir mão de mais benefícios (reforma, prestações sociais, etc.), e - de uma forma inovadora - pagando mais impostos.

Enquanto a pátria era salva, taxando 'ricos' como eu (e muitos outros, inclusive verdadeiros pobres), os governantes decidiram gastar dinheiro.
Por exemplo, dar aos jovens subsídios de renda... por serem jovens; ou rendimento mínimo a uma pessoa, pelo facto de ela existir (ainda que seja proprietária de imóveis); ou obrigar uma escola pública a aguentar meliantes; ou a ajudar agricultores que se recusam a fazer seguros, quando há mau tempo; ou a pedir pareceres para o Estado, pagos a peso de ouro, a consultores, em vez de os pedir aos serviços; ou a dar benefícios a empresas que depois se mudam para a Bulgária; ou a fazer propaganda e marketing do Governo; ou a permitir que a Justiça seja catastrófica; ou a duplicar serviços do Estado em fundações e institutos onde os dirigentes (boys) ganham mais do que alguma vez pensaram.

E nós lá vamos salvar o Estado, pagando mais.
Embora todos percebamos que salvar o Estado é acabar com o desperdício, o despesismo, a inutilidade que grassa no Estado.
Numa palavra, cortar despesa e não - como mais uma vez é feito - aumentar as receitas à nossa custa.

Neste aspecto, Sócrates fez o caminho mais simples.
Fez exactamente o contrário do que disse, mas também a isso já nos habituámos.
Exigiu-nos que pagássemos o défice que ele, e outros antes dele, nunca tiveram a coragem de resolver

Henrique Monteiro, Director do Expresso