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sexta-feira, 14 de maio de 2010

Memória de uma rebelião há 25 anos na Feira do Livro de Lisboa

No dia 14 de Maio de 1985, as pequenas editoras,
cansadas de discriminações,
afrontaram as grandes empresas do sector.

Não há notícia de ter ocorrido em qualquer parte do mundo uma rebelião de pequenas editoras. Foi o caso que um conhecido organismo associativo, de seu nome completo Associação Portuguesa dos Editores e Livreiros, vulgo APEL, delberou, certo dia, em consenso da respectiva direcção (presidida por Fernando Guedes), proibir a exposição e venda de revistas culturais na 55ª Feira do Livro de Lisboa (1985). Tentando mais tarde fundamentar as razões de tão incongruente determinação censória, a direcção da APEL "explicaria" que o certame era de livros e não de revistas. E mais não adiantou. Abateu-se sobre a APEL, em clamor, a pergunta: a Feira do Livro não é, então, uma feira de cultura? Mas a APEL não quis emendar a mão e insistiu: proibição absoluta de entrada na Feira de tudo quanto não tivesse forma de livro. Ficavam excluídos, desse modo, não só as revistas culturais mas também os posters de poesia que ao tempo constituíam a maior parte da produção das Edições ITAU.
A breve trecho se tornou claro aos olhos de toda a gente que a medida discricionária não era mais que um iníquo biombo atrás do qual se escondiam os interesses das grandes editoras, representadas em peso na liderança associativa. Editoras de livros, só de livros, evidentemente, porque fazer revistas culturais, nesta terra, de facto só por "carolice". Desalmada premissa, aquela de supor que os visitantes, gastando o dinheiro em revistas e posters, não lhes sobraria para comprar livros.

A poucos dias da inauguração estrepitou a histórica rebelião das pequenas editoras. Batidas durante todo o ano por ventos adversos, tinham-se habituado à fugaz bonança que para elas representava a Feira do Livro: era nesse lugar e nesse tempo que escoavam em quantidade minimamente expressiva as suas edições e por essa forma arranjavam fôlego para sobreviver até à Feira do ano seguinte. Cruenta realidade, mas era (é) mesmo assim.
Além disso, sabemos no que resulta uma paixão proibida. Só o não sabia, ao que parece, a direcção da APEL.
Em menos de 24 horas juntaram-se à mobilização para a "guerra" dezenas de editoras que tão-pouco produziam revistas de cultura. Simplesmente estavam cansadas de anos consecutivos de arbitrários procedimentos que sempre as colocavam num plano de desvantagem em relação às grandes empresas do sector.
Começou a circular um "jornal de luta" com sucessivas edições nas quais se dava conta à população da enormidade daquele planeado crime de lesa-cultura. Recolheram-se e publicaram-se numerosos depoimentos de figuras gradas da literatura. Elaborou-se um "Manifesto" e promoveu-se uma conferência de imprensa que fez repercutir em todos os meios a decisão assumida por cerca de quarenta editoras de manterem os pavilhões encerrados enquanto a medida censória não fosse revogada.
O episódio cedo transcendeu o âmbito de uma proibição circunscrita ao regulamento de um certame para se transformar num "caso do dia". Nunca a Imprensa e a Rádio (também a RTP, mais tarde) dispensaram espaço tão alargado a uma Feira do Livro como sucedeu com esta agitada 55ª edição. No final, o movimento de contestação quase submergiu os próprios promotores e diluiu-se num debate impetuoso sobre a necessidade de renovação da Feira do Livro de Lisboa.

Abreviando. No dia da inauguração houve uma mudança de estratégia. As pequenas editoras uniram-se num acto colectivo de desobediência. A direcção da APEL viu-se confrontada com um facto hilariante: as revistas de cultura, que de costume eram vendidas por meia dúzia de editoras, estavam agora expostas em mais de trinta pavilhões. O mesmo se passava com os posters de poesia. Um portentoso plano táctico. Ninguém acatou a proibição (excepção: Imprensa Nacional).
A VISITA INAUGURAL DO MINISTRO DA CULTURA

Quando o ministro da Cultura, Coimbra Martins, chegou para a inauguração, com um atraso de mais de meia hora, os representantes das pequenas editoras cortaram-lhe o passo, logo à entrada (ver foto, extraída directamente de um diário; à esquerda é reconhecível Krus Abecassis, presidente do Município). Coube ao poeta Júlio Roberto (à direita na foto) entregar-lhe o "Manifesto" e fazer a oferta de um poster com um poema de Florbela Espanca, não deixando de assinalar que a simples exposição daquele "produto espúrio" estava proibida na Feira...
Soube-se mais tarde o motivo do atraso: foi recebida no ministério da Cultura a informação telefónica de que conviria fazer um compasso de espera porque... «as coisas no Parque Eduardo VII estão um bocado complicadas.»

A APEL teve de render-se. Resta dizer: as pequenas editoras que desencadearam esta luta contra um acto de censura gravemente lesivo da função cultural de uma Feira do Livro ter-se-iam visto condenadas ao silêncio, sem apelo nem agravo, se a sua voz não tivesse ecoado como padrão da mais empolgante unidade e solidariedade. Por outro lado, o fragor a que se assistiu só foi possível graças a uma comunicação social sensível, independente, isenta. Não era difícil pressentir a justiça e o bom senso da causa defendida pelas pequenas editoras. Mas outra força não tinham naquele confronto desigual. De um lado estavam (estão) empresas editoras poderosas, algumas das quais se incluem no grupo dos grandes anunciantes na Imprensa; do outro estavam (estão) uns tipos "carolas" que sofrem em silêncio à cruel pergunta:
... Revistas de cultura? Então isso dá algum dinheiro que se veja?...



Pedro Foyos
Jornalista

terça-feira, 11 de maio de 2010

IIIII RECEITUÁRIO DOMÉSTICO IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII Como endiabrar a visita de Sua Santidade com historietas um nadinha inconvenientes

O autor deste Receituário, cumprindo a missão de que está investido (elucidar o cidadão baralhado sobre a complexidade do mundo actual), recorre excepcionalmente, na segunda crónica inspirada na visita de Bento XVI, a episódios da sua vida pessoal. Fica assim justificado o uso da primeira pessoa.


2. O MILAGRE DA POMADA BALSÂMICA

Citação:
«Mas como foi isto, meu Deus?
Como foi isto? Que milagre foi este?
(...) Maria Santíssima!
Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais


Foram perturbados os meus verdíssimos anos de menino-órfão de mãe. Aos sete anos e meio, quas'oito, expediram-me para um colégio modelar na região centro do País. Um estabelecimento de ensino sui generis, vincado cariz militar, vestíamos farda, o bivaque era obrigatório quando íamos em passeio ou tínhamos de marchar. Dispúnhamos de uma farda muito bonita para os dias festivos: azul escuro, botões dourados, o luzente emblema do colégio bordado também a ouro. Era com essa farda que nós, garbosos e de alma derretida, marchávamos pelas ruas da cidade. Alegria efémera. A tristeza chegava à noite quando, na camarata silenciosa, tentávamos apagar sob a roupa da cama o lume vivo das lágrimas e das memórias.
As placas tectónicas da minha vida já estavam imensamente desajustadas quando, por razões que não consigo recordar, transitei do rito militar para a iniciação religiosa. O novo colégio, em Lisboa, era administrado por padres católicos. Continuei em regime de internato. Tive então de decorar uma boa dezena de orações, rezadas em voz alta no decurso do dia: antes da primeira aula da manhã, antes e depois do almoço, antes da primeira aula da tarde, antes e depois do jantar, na camarata, perfilados ao lado da cama, e noutras ocasiões avulsas. Decoravam-se as rezas por ouvido, prestando atenção às palavras moduladas pelos colegas mais velhos. Cometi um erro de interpretação que perdurou por longuíssimo tempo. Pronunciava, com absoluta inocência, eu pescador me confesso. Quando dei conta do engano, achei divertido continuar a assumir-me como pescador. E passei a entoar a palavra-lapso com desafiante sonoridade, mas, para minha grande frustração, ninguém se apercebeu da heresia fonética.

Uma tarde queixei-me de arrepios de frio e de ardor na garganta. O padre Ezequiel pôs a mão na minha testa, ordenou-me que fosse para a camarata e metesse na cama, que ele já iria ter comigo para me tratar. Minutos depois, o padre Ezequiel, sentado à beira da cama, tirava-me a temperatura e perguntava, entre zeloso e meloso, onde é que me doía. Logo espetei um dedo denunciador para a garganta, depois para o peito. «Dói-te também o peitinho, é?». Assenti com a cabeça, vigorosamente. O padre Ezequiel retirou-se, um minuto depois regressou com um frasquinho de Vick Vaporub. Descobri então que a eficácia da pomada era maior quando aplicada à distância deslizante de alguns palmos da garganta e do peito, regiões que mereceram tão-só umas pinceladas despachadíssimas. Com mais vagar e a doçura de um tocador de cítara, o padre pôs-se a dedilhar a pomada abaixo da cintura. Imediatamente abaixo, latitude Sul, se é que me faço entender.

De medicina pouco ou nada sei, todavia posso garantir que aquele unguento canforoso foi uma dádiva dos céus. À hora do jantar, quando o padre Ezequiel voltou à camarata para nova terapia, já não me encontrou lá. Eu estava no refeitório, vivaz, são como um pero. Maria Santíssima! Os sintomas prégripais não duraram um credo, pode dizer-se que as dores na garganta e no peitinho foram entrada por saída. Vendia saúde mas ao mesmo tempo dominava-me o receio de vir a saber-se que naquela santa casa acabara de ocorrer uma cura milagrosa. Por muito menos, creio, terá sido declarada a canonização de tanta gente votada ao sublime ministério da virtude.



Pedro Foyos
Jornalista

segunda-feira, 10 de maio de 2010

III RECEITUÁRIO DOMÉSTICO IIIIIIIIIIIIIIIIIIIII Como endiabrar a visita de Sua Santidade com historietas um nadinha inconvenientes

1. O PROBLEMA DOS PAPAS MAIS PAPISTAS QUE JESUS

Citação:

Eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos
e lhe disse: José, filho de Davi, não temas
receber Maria por esposa, pois o que nela foi
concebido vem do Espírito Santo...


Houve um tempo em que o teólogo Joseph Ratzinger (actual Papa Bento XVI) era uma figura de excepção na Igreja Católica, concitando enorme respeito, até admiração, nos meios da intelectualidade ateia e do catolicismo progressista. Foi o tempo pós-Concílio Vaticano II, evento histórico, surpreendente lufada de renovação que chegou a alarmar os Serviços de Censura em Portugal, cuja direcção – bem se lembra o autor deste Receituário – chamava a si a supervisão de todo o noticiário e artigos referentes ao Concílio, sendo de hábito os textos devolvidos com o carimbo de "Proibido" ou ferozmente mutilados. O jovem teólogo Ratzinger, participante influente nessa obra renovadora empreendida por João XXIII, parecia querer sobrelevar, em audácia e discernimento, as reformas conciliares, tanto que terá sido dos poucos a fustigar a hierarquia clerical mais retrógrada com temas secularmente intocáveis como a sexualidade ou o pecado original. De notar que o próprio Concílio, não obstante as múltiplas sensibilidades e correntes progressistas que logrou congregar, derrotou uma tese desassombrada alusiva à virgindade perpétua de Maria de Nazaré, mãe (sem pecado) de Jesus.
Volvido meio século, permanecem intocáveis os temas de especificidade bem conhecida e discutida pela opinião pública, como o celibato obrigatório dos padres e a ordenação das mulheres. Em relação ao primeiro, poder-se-á avançar a perversa suposição de que Ratzinger está a sofrer um castigo divino, porque teve o poder, enquanto perene segunda figura da hierarquia da Igreja Católica, de contribuir para revogar uma lei antinatura imposta aos membros do clero: a de serem assexuais. O cardeal e depois Sumo Pontífice nada fez, nem como segunda figura nem como sucessor na Cadeira de Pedro. Pelo contrário, produziu um texto em que reforça o conceito de um clero assexual. No âmbito dos escândalos de pedofilia, acrescem os seus penumbrosos silêncios e omissões. Às supremas questões das condutas morais somam-se as materiais. Ratzinger é indisfarçavelmente um dos responsáveis pelos enormes prejuízos que está a sofrer a sua Igreja: a norte-americana, por exemplo, exibe a cifra colossal de três biliões de dólares advenientes das indemnizações às vítimas. E a contabilidade dos crimes não está ainda encerrada.

O problema do Papa Bento XVI, comum, aliás, a todos os antecessores, é o de ser mais papista que Jesus Cristo. Admissivelmente celibatário, Jesus não exigiu o celibato aos apóstolos, alguns dos quais eram casados. Não o era São Paulo, que todavia escreveu: «(...) para evitar o perigo da imoralidade, cada homem tenha a sua mulher e cada mulher o seu marido».

O Papa de olhar enigmático e sorriso coriáceo que nos próximos dias trará a palavra divina ao Povo Cristão deste cantinho do mundo, alterando em grau apreciável as rotinas de muitos milhares de portugueses, deixou de ser há décadas o teólogo evoluído, tolerante, racional do Vaticano II. Não é mais o promotor lúcido da célebre "Declaração sobre a liberdade e a função dos teólogos na Igreja" que a Censura marcelista cortou de alto a baixo em Dezembro de 1968. Ninguém lhe descobrirá um gesto, uma palavra, um esforço para acertar o passo com a marcha do progresso civilizacional. Nem se lhe ouvirá um suspiro de reconsideração sobre as suas inumeráveis prédicas, do mais rígido conservadorismo, condicionadoras da liberdade individual, de entre as quais se figura crudelíssima e insuportável a respeitante ao uso do preservativo.

De volta ao início: o dogma da Imaculada Conceição (Concepção) – Virgem Maria divinizada, concebendo sem o pecado de uma relação sexual normal. Um tema que, outrora, era por Ratzinger considerado de uma extravagância merecedora de reformulação. É neste ponto que o Receituário Doméstico vislumbra uma oportunidade de endiabrar a visita de Sua Santidade. Indispensável, para tanto, que o leitor tenha sido privilegiado com o convite e distintivo que lhe darão acesso, na manhã de quarta-feira, no Centro Cultural de Belém, a uma sessão dedicada ao "mundo da cultura". O programa da visita explicita: «Encontro do Papa com representantes do mundo da cultura».
Dificilmente se repetirá uma ocasião de estar tão próximo do Papa e de ele poder ser interpelado. O acto de "endiabramento" que propomos ao leitor investido na qualidade de "representante do mundo da cultura" será distinto, polido. Andou bem João Marcelino, director do Diário de Notícias, ao reprovar anteontem a eventualidade de um jornalista sedento de notoriedade perguntar ao Papa qual foi a última vez que teve relações sexuais. Fique claro que golpes baixos e chafurdices estão excluídos em absoluto do livro de estilo deste Receituário.
Endiabrar, sim, mas com elevação. O acto de "endiabramento" que o leitor protagonizará exige aquela intrepidez celebrizada em 1969 pelo universitário Alberto Martins, actual ministro da Justiça, quando, de forma desabrida, interrompeu uma cerimónia que decorria em Coimbra e se dirigiu ao Chefe de Estado, o serôdio almirante Américo Tomás.
Da mesma forma o leitor enfrentará Sua Santidade e dirá (sendo em alemão, tanto melhor) que deseja citar um longevo teólogo. Assim, de imediato:

A filiação divina de Jesus não se baseia no facto de Jesus não ter pai humano. A doutrina da divindade de Jesus não seria posta em causa se Jesus fosse o fruto de um casamento normal.

Tão herética intervenção causará decerto algum burburinho. O Papa ou alguém por ele inquirirá de quem são aquelas palavras.
O leitor, então, placidamente, responderá:
– Saiba Sua Santidade que as palavras são do saudoso teólogo Joseph Ratzinger. Escreveu-as quando tinha 42 anos. Depois disso não cessou de involuir.


Pedro Foyos
Jornalista
A seguir:
2. O MILAGRE DA POMADA BALSÂMICA

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Por favor...a sua idade...?

Dedicado a João Viegas, que durante décadas andou a ganhar fôlego
para apagar 65 velas e constatará logo à noite
que lhe basta um diminuto fôlego para apagar apenas duas.
As velas com algarismos incrustados
foram inventadas por um industrial sexagenário.

Tenho saudades do tempo em que me perguntavam a idade.
Hoje, por educação, ninguém me pergunta quantos anos já soma o extenuante cadastro da minha existência.
Em situações raras, como numa primeira consulta médica, recobro a felicidade da pergunta:
– Por favor... a sua idade...?
A falta de hábito faz-me vacilar, já errei à primeira, trocando a ordem dos algarismos. A senhora que preenchia a ficha mirou-me cheia de perplexidade, incrédula por ter diante de si um quarentão tão envelhecido.
Na realidade, a pergunta começa a desvanecer-se à medida que progredimos na adolescência. Aos vinte anos já ninguém mostra o mínimo interesse em saber a nossa idade. O verso de José Gomes Ferreira – «Recuso-me a ter mais de vinte anos» – eu o modificaria um nada-nadinha para: «Recuso-me a ter mais de dez anos.» Essa, sim, é a idade em que (ainda) detestamos que nos perguntem quantos aninhos temos. Ah, que saudades do tempo em que detestava a pergunta redobradamente detestável quando vinha mimada de aninhos e de outras denguices que tais! E como eu desejaria que a senhora que me questiona enquanto vai preenchendo a ficha, de súbito fizesse um sorriso caricioso e perguntasse:
– Por favor... quantos aninhos tem...?
Pelo contrário, das pouquíssimas vezes em que alguém coscuvilha a minha idade, a pergunta vem áspera, enodoada de rudeza:
– O senhor 'tá com que idade?
Apetece-me responder: «Depende. Hoje, por acaso, sinto-me com idade a mais e paciência a menos.»

A condição de sexagenário (mais ainda a de septuagenário) permite-nos pequenos erros, pecadilhos, simulacros menores, falsos lapsos que vão por conta da idade e merecem em geral uma beatífica indulgência. O mesmo já não acontece depois dos oitenta. Há então uma causa indubitável: a velhice néscia, insana. Um epíteto corrente resume quem está nesse limbo: “gagá”. Para evitarem tal crueldade, os octogenários lúcidos são quase sempre pessoas que refreiam as travessuras que bem desejariam fazer. Mas nós, os que estamos a meio da ponte, não devemos deixar de explorar o fugaz tempo de tolerância que nos resta. Dissimuladamente, semeemos pedrinhas na engrenagem. Sendo descobertos, confessaremos, lastimosos, que foi sem querer. Com sorte e para nossa felicidade dir-nos-ão que parecemos crianças. Será um dia ganho.

Outra pergunta detestável entre as mais detestáveis e de que tenho imensas saudades é aquela que invariavelmente sucede à da idade:
– O que queres ser quando fores grande?
Também já ninguém nos pergunta – a nós, aos velhos – o que queremos ser quando formos grandes.
É pena. Faria todo o sentido que a pergunta fosse feita aos velhos, porque todos os velhos são falsos velhos que mantêm intacto o secreto desejo de um dia poderem vir a ser grandes.

Pedro Foyos
Jornalista

sexta-feira, 23 de abril de 2010

João Botelho da Silva

Este texto foi escrito para um livro póstumo.
Dedico-o a quantos, algum dia, se interrogaram:
– Por que nascemos se temos de sofrer?
– Por que nascemos se temos de morrer?

João Botelho da Silva morreu pouco tempo depois de entregar à editora o original deste livro. Uma obra póstuma aos 27 anos é um facto brutal, insuportável. Esmaga pela opacidade absoluta das razões que não conseguimos decifrar – porque são, realmente, numa vagarosa e dilacerante evidência, indecifráveis. Tratando-se, como é o caso, de um dos mais significativos escritores portugueses dos nossos dias, tal circunstância redobra o obsessivo efeito de revolta.

(...) Deixou um livro publicado (Beduínos a Gasóleo, romance portentoso, Prémio Caminho de Ficção Científica) e um valiosíssimo espólio literário em prosa e poesia.
Concluído e entregue à editora ficou este livro de contos. Concluído? Vacilo e comovo-me porque o vocábulo não é inteiramente exacto. Guardo na memória, como um fotograma luminoso num filme longínquo, o dia em que o João me entregou o original. Costumava pedir-me a leitura e análise das suas ficções, antes de publicadas, fazendo o mesmo com seu Pai, o jornalista Botelho da Silva, e sua mulher, Isabel. Comigo brincava, nessas ocasiões: «Em antestreia exclusiva para a excelentíssima crítica!» Era uma alusão chistosa ao facto de eu assinar, nos últimos três anos, no suplemento Cultura do Diário de Notícias, uma secção de crítica literária. Ambos jornalistas daquele matutino, amiúde lhe antecipava, igualmente, os meus textos destinados à coluna. É preciso dizer, agora, que muitas das minhas ideias, das minhas palavras escritas, lhe deviam a consciência subliminar e estimulante das suas experiências, da sua cultura, dos seus sentidos, do seu mundo fantástico. Uma partilha límpida, como a pulsação essencial à artéria, porém subjacente, invisível. Um companheirismo germinado, singularmente, na paixão comum por um género literário e que foi crescendo na vivência fraterna de sonhos, projectos, descobertas, permutas, alegrias e secretas cumplicidades. Tudo isso num voo pleno, sem escalas geracionais: a minha idade quase dobrava a dele.

Por outras razões tinha aquela secção um especial significado. Ali lhe foi feita a primeira referência como autor literário. (Um pacto, na ocasião: eu renunciaria a empregar a detestada expressão «promissor», reportada ao seu talento; em contrapartida, ele obrigar-se-ia a acolher as minhas presunçosas sugestões... «bem, cinquenta por cento», concedeu.) Ali se celebrou o prémio com que a Caminho o distinguiu. No mesmo local se publicou aquela que seria a primeira crítica a um livro seu. Quase mais entusiasmado do que ele, alvitrei no jornal uma grande entrevista, que efectivamente me autorizaram a fazer-lhe e se publicou em três páginas. (Sem coragem para enfrentar a Redacção, o João gozou, nesse dia, uma folga atrasada.) Volvida uma semana apresentei-lhe o romance de estreia em sessão pública, coisa que jamais pensaria fazer com quem quer que fosse e jurei que não se repetiria. Tento dizer, simplesmente: eu vivia, com intensidade, a aventura da sua imaginação. Talvez se perdoe, por isso, a tentação da despedida, o inevitável lugar-comum do texto sentimental, a pieguice tão falha de originalidade, e neste momento adivinho-lhe a reprovação mordaz: «Oh, não!, mete o violino no saco!»

Apressado, a escrita vertiginosa ultrapassava-o por vezes na reflexão. Nos últimos tempos angustiavam-no incertezas relacionadas com os seus contos admitidos para publicação. Manifestava certa contrição pela entrega, porventura precipitada, do original à editora. Disso me deu conta, logo naquele dia – fragmento inapagável na minha memória – em que me confiou uma cópia: «O livro já está na editora, não te espantes, mas olha, deu-me para ir levá-lo. Não fiques preocupado, o processo de feitura é tão lento que dará para introduzir todas as alterações que virmos ser necessário.»
Tomei o peso da resma que me passava para as mãos e olhei-o cheio de perplexidade, sem entender a razão daquela impaciência.

(...) Eu fazia um esforço desajeitado para não o envaidecer. Terminada a leitura do livro, projectei enviar-lhe uma mensagem através do circuito informático interno do jornal. Uma frase breve, grave, do género: «Escreveste algumas das melhores páginas da literatura portuguesa de todos os tempos.» Sabe-se que o temor pela reverência excessiva leva a refreios autocensórios. Portanto, ao reler a frase, talvez a alterasse para: «Pois bem, João, creio que terás escrito algumas das melhores páginas da moderna literatura portuguesa.» Mas não cederia mais do que isso. E sorriria ao imaginar a reacção costumada de certos bem-pensantes se resolvesse um dia publicar essa opinião: «Tudo certo, mas... o meu amigo queria referir-se à literatura de ficção científica, não é verdade?» Não, não é verdade.
Claro que não enviei mensagem alguma ao João. Existem tácticas manhosas que não devem ser desvendadas. Refira-se, tão-só, que um elogio desmesurado pode deitar tudo a perder quando pretendemos que o autor se entregue a um trabalho zeloso de aperfeiçoamento final da obra. Depois, mas só depois, lhe diremos ter realizado uma obra-prima.

O livro que eu acabara de ler carecia manifestamente de uma revisão estilística. Nas margens do texto fizera dezenas de anotações com o fim de o autor considerar a reformulação de expressões repetidas, construções gramaticais, pontuação e um ou outro trecho que, no ânimo das descrições impetuosas, resultara menos inteligível. E o original já na posse da editora!
(...) «Achas que, depois disto tudo, a editora quererá publicar mais algum livro meu?», perguntou-me, uma tarde. Ele acolhia com ingenuidade certas afirmações disparatadas, e terá sido por isso que lhe respondi, sentencioso, desafiante: «Com toda a certeza que não.»

Começáramos a analisar todas essas questões quando...
... de súbito, o seu corpo gritou, num rebate tardio, o avanço do cancro.
Exacto: escrevo cancro, a eufémica "doença prolongada" que urge banir do vocabulário jornalístico.
Depois, foi o terrífico percurso escarpado de angústias, de pânicos murmurados, a esperança estreitando-se nos pobres corações dos seus amigos. O nosso debate foi sucessivamente adiado: «Trata de sair deste hospital», pedia-lhe, «temos a agenda atrasadíssima!» Mas o livro ficou intocado. Fixo agora, vezes sem conta, a "agenda de trabalhos" que permanece aberta, protelada por um desencontro absurdo, incompreensível. Talvez não irremediável. Sempre acontece comigo, nos dias finais, isto: olhando o Sol matinal, por um instante dolorosamente efémero acredito que reatarei conversas antigas.


João Botelho da Silva morreu há quinze anos, que se perfazem hoje.
O livro referido nesta crónica foi publicado mais de um ano depois, com o título "As Horas do Declínio". A edição ficaria marcada por vicissitudes que me impeliram para um corte de relações com o director editorial da Caminho.
Vi pela última vez o meu amigo na manhã em que fui dar sangue, no Hospital Egas Moniz. Morreu nessa semana, a 23 de Abril.
Somos animais cronólogos, servos do sempiterno calendário, não conseguimos fugir aos ritos das datas.
Partilho esta evocação com quantos já perderam um grande amigo e, em certos dias, desejariam escrever-lhe uma carta sem morada.



Pedro Foyos
Jornalista

terça-feira, 30 de março de 2010

Leandro nunca existiu IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII ( Conclusão)

POR RAZÃO DE HUMANIDADE, NENHUM INQUÉRITO CÍVICO
DEVERIA ATRIBUIR O CONCEITO DE "ACIDENTE"
A UMA CRIANÇA QUE DURANTE UM TEMPO INFINDO
FOI EMPURRADA PARA O SUICÍDIO.

O verniz vocabular de expressões como "acidente" e "morte por causa indeterminada" estala quando se examina com seriedade e isenção os dois últimos anos da breve vida de Leandro. Esteve durante esse tempo infindo em secreto e silencioso sofrimento. Mas os colegas sabiam que ele era constantemente sovado por alunos mais velhos. Somente nas últimas semanas, em especial na última, Leandro não conseguiu reprimir a dor e começou a repetir a frase que no dia derradeiro, 2 de Março, foi pronunciada em choro e numa terminante forma verbal: «Não apanho mais, vou-me botar ao rio". Um minuto antes, Leandro sofrera nova e bárbara agressão que foi presenciada por colegas. A imprensa do dia 4 noticiava: «Os supostos agressores já foram identificados e estão a ser acompanhados por um psicólogo na própria Escola.»
Desde o instante em que Leandro saiu disparado em direcção à ponte-açude, tudo poderia acontecer. Encontrava-se sobre um instável fio de arame, de tão fraca resistência que seria inevitável partir-se como um ramo frágil que cede a uma tempestade súbita. E, ao partir-se, o equilibrista cego poderia cair para o lado da vida ou para o lado da morte. Caiu uma primeira vez para o lado da vida, em cima da ponte, em resultado da refrega com o primo Ricardo Nunes, um ano mais velho, que o impediu de lançar-se, ficando com um braço magoado. «Depois», relata Ricardo, «desceu pelas escadas, foi ali para o parque de merendas e de repente tirou a roupa e meteu-se na água.» Nesse momento impreciso, Leandro caiu para o lado da morte. Se foi ou não um acaso, se a vontade própria de Leandro influiu ou não na decisão mais cruciante da sua existência, é quase um irrelevante exercício técnico. Claro que, numa perspectiva judicial, é enorme a diferença entre as duas situações. Mas civicamente não há qualquer diferença. O "acidente" alivia porventura o peso de muitas consciências, desresponsabiliza quem colocou Leandro no fio de arame, quem o empurrou para uma circunstância limite, quem fez emergir na sua mente, ao longo do tempo, um ideário suicida.
As palavras dos mestres psiquiatras são sucintas: não existe complexidade na compreensão do ideário suicida, o qual cessa, enfraquece ou fortalece em função da cessação, enfraquecimento ou fortalecimento das causas que lhe estão subjacentes. No último caso, poderá transformar-se repentinamente numa indominável irracionalidade – a "grande e cega fúria" – latente durante poucas horas ou minutos. Leandro atingiu esse estádio ao "sair disparado" da Escola, a chorar, correndo para a ponte. É extremamente admissível que nesse momento tivesse consumado o suicídio, não fosse a intervenção do primo Ricardo com a luta entre ambos. Leandro fugiu depois para a beira-rio. Foi possível assistir na RTP à reconstituição desse percurso, com a jornalista Judite de Sousa e Ricardo ao seu lado descrevendo tudo, passo a passo. Impossível, fixando os olhos deste jovem, escutando-lhe as palavras nervosas, duvidar da sua dor, da sua sinceridade. Por tal motivo, profundo é o sentimento de tristeza que sinto ao antever que este e outros jovens da Escola Luciano Cordeiro, em Mirandela, vão sofrer com as conclusões dos inquéritos oficiais ao "caso Leandro". Porque tudo faz prever que tais conclusões os irão desmentir, que negarão os seus testemunhos. Seria indispensável que a Escola, o Ministério Público, o Ministério da Educação providenciassem com urgência um apoio a estes jovens. Melhor do que eu o dirá a notável pedagoga Professora Beatriz Pereira, porventura a maior especialista do "bullying" em Portugal, autora de vários livros sobre o tema e coordenadora (juntamente com a Professora Adelina Paula Pinto) da obra "A Escola e a Criança em Risco", da qual extraio um trecho da secção intitulada, precisamente, O bullying e o suicídio. Eis:

«O jovem que acabou por se suicidar escolheu, provavelmente, um colega da sua idade com quem partilhou a sua intenção. É já demasiado tarde para evitar a morte de um jovem, mas não será tarde para apoiar o colega que partilhou aquela dor e os outros colegas da turma. Pode ser importante falar com este jovem e acompanhá-lo, para que ele não se sinta culpado do sucedido, evitando assim os efeitos perversos da situação.»

Se já era importante apoiar e acompanhar os colegas da turma de Leandro e todos os amigos que com ele privaram e o estimavam, mais o será agora, quando lhes for dito que, afinal, Leandro nunca existiu.



Pedro Foyos
Jornalista
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segunda-feira, 29 de março de 2010

Leandro nunca existiu IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII ( 1ª parte)

O "BULLYING" E O SOFRIMENTO DE CRIANÇAS
DISSOLVEM-SE DE NOVO EM ARGUMENTOS FRÍVOLOS
QUE DESRESPONSABILIZAM OS CULPADOS.
NÃO HOUVE SUICÍDIO? ENTÃO, ESTÁ TUDO BEM!


Os inquéritos ao "caso Leandro" promovidos pelo Ministério Público e pelo Ministério da Educação encontram-se encerrados (ou quase, no que concerne ao primeiro). Em relação ao segundo presume-se que só não foi ainda divulgado para evitar uma inconveniente sobreposição temporal com o funeral do menino. Porém, as conclusões essenciais, apontando para "acidente", estão a ser difundidas pela comunicação social.


Permito-me transcrever um fragmento da crónica que escrevi há três semanas:
«A falácia continua a fazer o seu caminho. Não haja dúvidas: o caso do menino que se lançou ao Tua não tardará a ser engolido pelo refugo-padrão dos actos de desespero por causa indeterminada.»
Fui optimista. E em parcas linhas enganei-me duas vezes. Primeiro, admiti que pelo menos viesse a ser reconhecido, como em casos anteriores, o eufémico "acto de desespero". Depois, desta vez o episódio nem foi remetido para o habitual gavetão das "causas indeterminadas", também rotulado de "causas mal definidas". Seguirá lépido para o gavetão sem fundo que tradicionalmente está adstrito às "causas indeterminadas" – o dos "acidentes".
Em recente entrevista à RTP tive oportunidade de denunciar a dita falácia (o mínimo que podemos chamar a um recorrente e documentado artifício que há muito se pratica neste país) e de imediato recebi de doutos especialistas um conjunto de informações que desconhecia. Por exemplo, a de Portugal apresentar um índice elevado de "mortes por causa indeterminada", superior à média europeia. Morre-se muitíssimo, por aqui, misteriosamente. Mais: há dois anos, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa expressou inquietação pelo tabu do suicídio adolescente, fazendo apelo aos países-membros para que assumissem este tema como prioritário e combatessem as causas primárias, ligadas sobretudo à violência física e/ou psíquica. Pois entre nós, como bem sabemos, nada se fez e o "bullying" atinge igualmente na actualidade uma das mais altas taxas no conjunto dos países europeus, não cessando de crescer (só no último ano lectivo aumentou 3% em relação ao anterior, segundo dados – sempre cautelosos – da divisão da PSP que engloba o Programa Escola Segura).
Vale a pena reter outra informação atinente aos suicídios que ficam escondidos no gavetão dos "acidentes". Separar as duas situações constitui um pleito antigo dos psiquiatras portugueses especialistas em suicidologia. Defendem, até agora infrutuosamente, um procedimento que tem a designação científica de «autópsia psicológica», cuja realização compete em exclusivo aos psiquiatras e psicólogos. Excluído por completo do domínio da investigação policial / estatal / corporativa, esse estudo consiste em entrevistar com específica cientificidade o maior número possível de familiares e amigos da vítima, visando a eventual propensão desta para a ideação suicida e averiguação do grau conducente à consumação. Isto, assegura-me um psiquiatra que me contactou, não é feito em Portugal. No caso de Leandro, salta aos olhos das almas lavadas que vinha persistindo essa ideação suicida, comunicada verbalmente, várias vezes, aos amigos. Se houve ou não consumação é uma questão que já se coloca a um outro nível, sobretudo judicial, que jamais poderá fazer esquecer o historial anterior ao dia da tragédia. No entanto, é isso que facilmente se adivinha para os próximos dias. Num momento inditoso, também um jornalista que respeito subscreveu a tese frívola, a roçar o patético, de que Leandro pretendia tão-só tomar um banho nas águas do rio Tua.

DESUMANIDADE ANTES E DEPOIS DA MORTE
«Todos fomos enganados» – escreveu na sua crónica do Expresso o meu amigo e antigo colega de ofício (de local de trabalho, inclusive), Miguel Sousa Tavares (MST). Sempre lhe admirei o desassombro e honestidade intelectual. (Com imodéstia espero que continue a pensar o mesmo de mim). Espantou-me por isso a docilidade pueril com que aceitou a «versão corrigida» (expressão sua) do "caso Leandro", baseado numa "antecipação" das conclusões policiais publicada pelo Diário de Notícias. Escarificando uma dessas conclusões, MST é em especial crudelíssimo ao escrever que Leandro «não se quis suicidar, mas apenas tomar banho no rio, tendo sido levado pela corrente.» Sublinha depois que «a fazer fé na segunda e corrigida versão, todos fomos levados ao engano.» Por fim desanca «a nossa imprensa, quase toda, (que) vive à procura de sangue, escândalos, tragédias ou heróis.» E que não procura «a verdade da história além das aparências.» Justificadíssimas razões e oportunidades não faltarão a MST para dar valentes açoites à «nossa imprensa». Serei o primeiro a oferecer as velhas nádegas por pecadilhos e juízos transviados cometidos em meio século de jornalismo. No entanto, direi: nem que seja por uma vez, esta vez, «a nossa imprensa» procurou de facto a verdade. Simplesmente, transmitiu-a em estado puro, antes de maculada pelas "correcções de conveniência". (Será possível, Miguel, que já tenhas esquecido o que são e como se fazem as correcções históricas?).
Na verdade, causa perplexidade que MST "faça fé" na «versão corrigida» e expurgue à unhada, como matéria tinhosa, os inúmeros testemunhos expontâneos colhidos pelas dezenas de jornalistas que desde o dia 3 de Março povoaram a área onde ocorreu a tragédia. Uma futura História do Jornalismo conterá esse capítulo épico: «O LOGRO DE MIRANDELA». E aflige a destreza com que o "caso Leandro" deixou de concentrar-se na realidade sofrente de um menino vítima de "bullying", durante dois anos, para constituir unicamente uma porfiada pesquisa sobre as circunstâncias que envolveram a sua morte. A morte em si parece não importar. As circunstâncias, sim.

Somos agora projectados para um cenário difícil de conceber. Dir-se-ia que nas horas sequentes ao desaparecimento de Leandro houve imensa gente que, apressadamente, antes da chegada dos jornalistas, se conluiou para engendrar uma mentira colossal. Miúdos com idades entre os 11 e os 14 anos foram induzidos à mentira e a encenações mirabolantes. No que toca aos adultos, que eu tenha dado conta, apenas uma pessoa não aderiu à "grande trapaça" – o presidente da Associação de Pais, que começou por negar o "bullying", depois eclipsou-se, não voltou a ser visto até hoje. Os demais, jovens e adultos, devem ter-se aplicado num treino intensivo da mentira, pois não se ouviu uma única voz dissonante. Tudo saiu afinado. E os jornalistas, de boa fé, caíram na medonha cilada, encerrando o ciclo da esquizofrenia com a notícia de que na Escola Luciano Cordeiro, em Mirandela, alguns jovens (perto de uma dezena) eram vítimas de "bullying" muito severo, entre os quais um aluno do 6º ano, de nome Leandro Filipe, em sofrimento há dois anos e que por fim se atirara às águas do rio Tua. (Sim, é verdade, há uma correcção a fazer. Os títulos jornalísticos alteraram o verbo. A frase genuína de Leandro, repetida aos amigos, era: «Não apanho mais, vou-me botar ao rio").

Todavia, agora que um menino dez-reis-de-gente, um dos mais franzinos da Escola, está prestes a converter-se num temerário arruaceiro, afrontando os colegas graúdos, talvez também um impostor, porque o suicídio já se afigura duvidoso, e tão intrépido que ousou, numa terça-feira fria e enevoada, tomar banho nas águas rápidas do Tua, terá interesse em reflectir sobre o motivo porque os “Leandros” deste país têm de morrer, na técnica expressão oficial, em consequência de infelizes "acidentes" ou, com maior frequência, por “causas indeterminadas”.



Pedro Foyos
Jornalista
A seguir:
POR RAZÃO DE HUMANIDADE,
NENHUM INQUÉRITO CÍVICO
DEVERIA ATRIBUIR O CONCEITO DE "ACIDENTE"
A UMA CRIANÇA QUE DURANTE UM TEMPO INFINDO FOI EMPURRADA PARA O SUICÍDIO

terça-feira, 23 de março de 2010

"Star Wars": revisitação mágica em Lisboa

Segunda apoteose da imaginação
a partir de uma saga marcante
na história do cinema.
E boa notícia para os nostálgicos:
os seis filmes irão reaparecer
nas salas portuguesas.

Anunciado como o maior espectáculo multimédia do ano, Star Wars in Concert, em digressão mundial, fará uma curtíssima escala em Lisboa, no Pavilhão Atlântico, por apenas dois dias (ontem e hoje). A grandiosidade desta variante criativa de A Guerra das Estrelas firma-se não só nos espantosos efeitos visuais mas também e sobretudo na participação da Royal Philarmonic Concert Orchestra e um coro soberbo. A par da execução musical, composta na íntegra por John Williams, desfilarão trechos dos seis filmes da saga (trilogia inicial de 1977- 1983, e a seguinte, de 1999 - 2005) projectados em ecrãs LED de alta definição, com a altura de três andares – os maiores algumas vez utilizados numa digressão.
Será decerto a segunda apoteose da imaginação, digna da genialidade de George Lucas, o criador de uma das sagas marcantes na história do cinema.
Vejamos como tudo começou.
«O meu alvo era, tão-só, o público jovem, com 14 anos ou menos», escreveu George Lucas referindo-se a Star Wars. Propósito aparentemente pouco ambicioso para o primeiro filme de uma saga que viria a converter-se, a breve trecho, num marco histórico. Eu já ia nos trinta e tantos quando integrei uma quilométrica fila (creio que no antigo Monumental) para conseguir o bilhete. Justificava-se: a nada igual se assistira nas últimas décadas. O ano memorizado pelos cultores cinéfilos em relação a um êxito semelhante foi o de 1939, data da estreia de E Tudo o Vento Levou.
Surpreendeu também a notícia de que Star Wars teve uma primeira apresentação limitada a um diminuto grupo de 32 salas em todo o território dos EUA. A verdade é que ninguém, da produtora ao próprio realizador, passando por uma boa dezena de grand masters do ofício, previra um sucesso tão retumbante (excepção significativa: Steven Spielberg). Muitas razões determinaram o excepcional acolhimento do público. Uma delas tem-se figurado primordial e congrega genericamente as restantes. George Lucas, o obreiro da saga, recriou com magistral sentido de espectáculo um certo cinema popular, de entretenimento, romanesco e inocente, repleto de aventuras fantásticas, que parecia extinto. Paralelamente, a ficção científica como género literário ascendia ao mais dignificado nível de sempre e seduzia cineastas já proeminentes, como Spielberg, que no mesmo ano estreava Encontros Imediatos do Terceiro Grau. Mas a convicção geral era a de que o género épico, para grandes plateias, que aureolara o cinema americano de memórias e lendas etéreas, tivera o seu tempo. Os próprios heróis-pulps da exploração espacial começavam a revelar-se mortais.













Ninguém acreditava no êxito de um eventual retorno, sobretudo quando associado – eis o caso – a uma ficção científica que recelebrava o imaginário de gestas sepultadas há muito e dos respectivos paladinos do tipo Buck Rogers (perdão: capitão William Buck Rogers) e o não menos intrépido Flash Gordon, para citar apenas dois com quem mais privei na efémera transição da infância para a adolescência (crudelíssima efemeridade, porquanto num mundo perfeito deveria representar a vida por inteiro).
O projecto de Lucas deparou, por isso, com espinhosas adversidades, evoluindo em vacilantes fases, esperanças esvaecidas, energias desbaratadas na vã crença da conversão da descrença. O próprio cineasta, recorde-se, confidenciava entre amigos o seu cepticismo. Depois das recusas da United e da Universal, entreabriu-se a porta da Century Fox. O presidente Alan Ladd Jr. fortalecera as finanças da produtora com uma série, precisamente de ficção científica (Planeta dos Macacos) e aceitou a ideia de uma aposta forte na temática fantástica aplicada a um filme de grande orçamento. Dois anos depois, obtido o script exigido ao realizador, a Fox disponibilizou o capital. Estava-se na primavera de 1976. Em Portugal ainda fumegavam, aqui e ali, os dissolvidos incêndios de outra produção épica, o Verão Quente de 1975.
Começou enfim a rodagem de Star Wars com Lucas desenvolvendo um trabalho ciclópico, perseverante, no limite da resistência, para acudir à infinidade de exigências que um projecto de tal magnitude implicava.
Os efeitos especiais, sustentáculo do gigantesco empreendimento, foram confiados a uma equipa de ouro liderada por um génio das trucagens modernas, John Dykstra, então principal responsável criativo da Industrial Light & Magic, a empresa entretanto criada por Lucas e que mais tarde se tornaria na fonte luminosa dos prodígios inimagináveis onde se "abastecia" a elite do celulóide.
Múltiplas reformulações técnicas se operaram a um ritmo vertiginoso, num aparato de efeitos sem paralelo até então. Contudo, num aspecto permaneceu o filme inalterado desde a primeira hora: a história.
Lucas sempre pretendeu que o plano narrativo do filme cingisse, numa simplicidade extrema, os elementos de fantasia, aventura e humor assimiláveis de imediato por um público juvenil (o tal «com 14 anos ou menos»). Disse também: «Este filme foi feito para uma geração que cresceu sem contos de fadas» .






Luke Skywalker é um típico cavaleiro arturiano cujo heroísmo não conhece limites, disposto a dar a vida, se necessário, por uma causa justa, pelo triunfo da verdade ou pelo ímpeto generoso de salvar uma dama em perigo – no caso, a Princesa Leia Organa de Alderaan, a frágil soberana da aventura.


No entanto, tudo se passa, agora, algures no espaço, numa outra galáxia e num outro tempo. A Princesa – que tem o segredo de uma arma prodigiosa, além de um "estonteante" biquini dourado – tenta escapar às forças opressoras, cujos desígnios são os de substituir os regimes pacíficos e democráticos por uma ditadura imperial, porém acaba por ser capturada. Darth Vader, sinistro ciborgue que comanda os exércitos do Mal, mantem-na à sua mercê.
De espírito nobre e vontade inquebrantável, Luke não hesita na decisão de salvar a Princesa. Para tanto, encontra-se com Ben Obi-Wan Kenobi, um venerável cavaleiro do Bem que lhe transmite os místicos poderes da Força. Luke e os robots C-3PO (Threepio) e R2-D2 (Artoo Detoo) – os mais populares do Universo! – partem ao encontro da Princesa cativa, mas o jovem, armado tão-só com a sua bravura e com o sabre de luz herdado do pai, contrata, para o ajudar na terrível empresa, o mercenário interplanetário Han Solo (um imberbe Harrison Ford), aventureiro oportunista e matreiro que, no momento decisivo, se deixa sobrelevar por uma intuição de honra e pelo mais elevado altruísmo.
A este grupo fantástico junta-se Chewbacca, personagem estranhíssima, espécie de cão configurado em urso («tapete rolante malcheiroso», como lhe chama delicadamente a Princesa).
Assim começa a saga Star Wars, de George Lucas, que, anuncia-se, reaparecerá em breve nas salas portuguesas.
Para todas as idades.




Pedro Foyos
Jornalista



terça-feira, 9 de março de 2010

Na morte de Rogério Fernandes

Tive uma vida académica privilegiada quanto a grandes professores. Cito dois, apenas no segmento dos historiadores e filósofos notáveis: Joel Serrão e Rogério Fernandes. Mais tarde, já jornalista, entrevistei-os a quase todos, com a prosápia de quem deseja demonstrar aos mestres que o antigo e inexperto praticante da vida airada fizera-se gente e por nada no mundo os deixaria ficar mal.

A entrevista a Rogério Fernandes, publicada em 1961, foi muito golpeada pela Censura. O movimento existencialista alvoroçava então uma parte da juventude universitária e tentei que o meu professor abordasse o tema numa linguagem acessível. As provas de Censura, que preservo e acabo de revisitar, são bem esclarecedoras da ingratitude de tal missão. Os censores não permitiam qualquer pensamento desenvolvido a partir de nomes como Sarte, Camus ou Simone de Beauvoir (esta, aliás, não tardaria a entrar no Index Prohibitorum, onde permaneceu largos anos). Mas o espírito desassombrado e progressista do professor doutorado em História e Filosofia da Educação ilumina-se nesta frase que, por inadvertência ou insciência, a Censura indultou: «Importaria relacionar o ensino da Filosofia com outros sectores da Cultura – o romance, o cinema, o teatro, as artes plásticas. (…) No campo da Ética, por exemplo, seria também interessante que os nossos manuais incluíssem documentação apropriada sobre problemas da vida.»

Este era o professor que chegava à sala de aula – aula de Filosofia! – com uma braçada de jornais e depois convocava os alunos para a reflexão e discussão do noticiário do dia…
Rogério Fernandes foi proibido de ensinar. Nada de mais cruel poderá conceber-se em relação a uma pessoa que, tendo nascido para ensinar, tendo o ensino como paixão e razão de vida, se vê expulso do ensino. Essa era uma das nossas cumplicidades. Eu conhecia bem o drama. Quando nasci já o meu avô paterno se encontrava igualmente proscrito («de todas as escolas do País»), ele que havia sido uma figura prestigiosa na democratização do ensino durante a I República, director de um estabelecimento histórico, o Colégio Parisiense em Lisboa, e que Salazar condenaria a viver até ao último dos seus dias a dar explicações particulares numa exígua sala de um terceiro andar da Av. Sacadura Cabral, em Lisboa. De permeio ia publicando manuais escolares, abarcando todas as disciplinas, da Gramática à Aritmética e Geometria, pois existiam duas chancelas editoriais sempre solidárias para com os desterrados pelo regime (a Biblioteca Cosmos, fundada por Bento Jesus Caraça, e a Gomes & Rodrigues, no Largo de D. Estefânia, aonde o meu avô me levava pela mão, a outra apertando pundonorosamente o manuscrito.)

Depois do 25 de Abril, o nome de Rogério Fernandes readquiriu notoriedade, também como reformador. Foi um dos impulsionadores das reformas do ensino primário, ficando a dever-se-lhe em grande parte o prolongamento da escolaridade obrigatória. Durante dois anos exerceu o cargo de director-geral do Ensino Básico, logrando a concretização de projectos que acalentava há décadas.

Acompanhei à distância a sua dissidência partidária. Chegou a sentar-se no Parlamento como deputado do PCP, mas nunca o consegui ver sob o fato apertado de “homem de partido”. Não me surpreendeu por isso o termo de uma militância (sempre ao lado de outro historiador, Augusto da Costa Dias) que remontava a uma das épocas mais ominosas da Ditadura. Esses são episódios da pequena crónica. A grande crónica para a qual quero reverter a memória terna de Rogério Fernandes é a do tempo do heroísmo sem heróis, das solidariedades singelas e tão imensas. Por exemplo, a solidariedade sem história que o envolveu quando foi director da Seara Nova, uma das raras vozes da resistência. Eu conto:

A situação financeira da revista era aflitiva. Do ponto de vista empresarial, os “quadros” confinavam-se ao próprio director e a parcos colaboradores voluntariosos que, remunerados precariamente, amanhavam como podiam o expediente administrativo. Tamanha era a penúria que nem dinheiro havia em caixa para o cíclico recrutamento do pessoal incumbido de uma operação crucial – as etiquetas postais. Demoraria ainda o advento das fotocópias, e cada número da publicação – adquirida sobretudo por meio de assinatura – implicava a escrita à mão, a partir de ficheiro, de alguns milhares de etiquetas para a expedição pelos correios.

Certo dia, os jornalistas do diário República tiveram conhecimento da dramática situação. A Seara Nova estava impressa, pronta a ser expedida para os assinantes, e o director Rogério Fernandes passara toda a noite a escrever etiquetas. E que só ia na casa das poucas centenas. De imediato se organizou um plano socorrista, por turnos, com o fim de, sem prejuízo do serviço do jornal, se acudir à crise seareira. Foi assim que eu e outros jornalistas fizemos nessa tarde e noite sucessivas viagens à sede da revista para copiar milhares de nomes e respectivos endereços. Procedimento repetido, pelo menos, em dois números sequentes da revista. E numa dessas vezes, se bem me lembro, só por minha conta ficaram manuscritas trezentas fichas. Com elevado esmero caligráfico para não haver extravios






Pedro Foyos

Jornalista

sexta-feira, 5 de março de 2010

Este brando país dos"actos de desespero por causa indeterminada"

O que não foi dito sobre o caso do menino
que se lançou ao rio Tua

Alguns órgãos da comunicação social têm referido a tragédia do jovem Leandro, em Mirandela, como «o primeiro caso mortal de bullying em Portugal». Não é verdade. Não por culpa da comunicação social, que se limitou a repercutir declarações de entidades académicas e policiais. Não é verdade, insisto. Dito de modo mais frontal: é uma mentira antiga. Nos últimos tempos ocorreram vários casos que estão firmados em testemunhos pessoais e públicos de personalidades fidedignas de áreas adstritas ao fenómeno, em especial a da pedopsiquiatria. Foi precisamente um caso mortal que esteve na génese de uma investigação jornalística que desenvolvi durante largo tempo e vertida mais tarde para livro. Contudo, tragicamente, o número será maior que os dos testemunhos e das notícias difundidas em termos nem sempre explícitos.
Há cerca de três meses tive a oportunidade de circunstanciar neste espaço alguns aspectos menos conhecidos do fenómeno negro que, à falta de termos sintéticos nacionais, se internacionalizou como bullying. Aludi então ao insurgimento manifestado por destacados pedagogos portugueses sobre a forma como no País se ignora ou subestima o suicídio juvenil, não raro encoberto sob a falácia da “causa indeterminada”. A expressão exacta, convencionada, é: «acto de desespero por causa indeterminada». O bullying, uma ou outra vez associado a esses actos desesperados, não é assumido. E remete-se a explicação dos desfechos dramáticos para o domínio do mistério. Urge aditar outro facto incómodo: esta tem sido também uma forma expedita de os estabelecimentos de ensino se excluírem do embaraço de conviverem historicamente com um episódio de suicídio gerado pelo bullying.
A falácia continua a fazer o seu caminho. Não haja dúvidas: o caso do menino que se lançou ao Tua não tardará a ser engolido pelo refugo-padrão dos actos de desespero por causa indeterminada. Significativo que o vocábulo “suicídio” seja evitado quanto possível. A expressão “suicídio juvenil” está banida neste brando país.
Não menos constrange ler e ouvir afirmações (abundantes nos últimos dias) do género: «Na escola, todos batem uns nos outros, sempre foi assim». Ora, tal realidade nada tem que ver com bullying. Nenhum jovem irá suicidar-se na sequência de uma agressão isolada, de uma zaragata de recreio, até de uma forte cena de pancadaria. O bullying transcende esses episódios, mesmo que alguns deles possam atingir um grau de violência preocupante. Mais, imensamente mais, o bullying é uma tirania física e/ou psicológica exercida por uma entidade (quase sempre grupal) sobre vítimas frágeis (Leandro era uma criança enfezada), de forma continuada (semanas, meses, anos). Essa tirania poderá um dia conduzir a vítima a um acto suicidário. Às vezes, como tem ocorrido sobretudo nos EUA, o suicídio é antecedido de uma “chacina de vingança”.
O jovem Leandro saiu disparado da escola, a chorar, anunciando que ia atirar-se ao rio. Este fragmento de notícia traz à memória o caso de Jokin Cebrio, um menino espanhol que há algum tempo se lançou das muralhas da cidade de Hondarribia, onde vivia. Também Jokin abandonou a escola, repentinamente, e dirigiu-se a casa. Não estava ninguém. Deixou um papel informando os pais que não suportava mais a maldade de alguns colegas. Saiu e encaminhou-se para as altas muralhas. Choraria também, durante esse percurso? Podemos prever que sim. Chegado ao cimo, venceu todos os obstáculos físicos de segurança e lançou-se.

O bullying é também isto: fugir, fugir, fugir.

E quando fugir não é mais possível, resta uma fuga alada para a morte.

Pedro Foyos
Jornalista

quarta-feira, 3 de março de 2010

A Escuta do Dia

– Direcção de Informação, muito boa noite.
– Boa noite.
– Em que posso ser-lhe útil, minha senhora?
– O senhor é pessoa... como dizer?... de responsabilidade nessa estação?
– Bem... sou um dos adjuntos do Director.
– Então é assim. Eu quero apresentar uma reclamação.
– Sim? Ah, nesse caso... faça o favor. A senhora quer reclamar sobre quê?
– Sobre as escutas.
– As escutas!? Não percebo...
– Ó senhor, que escutas hão-de ser?
– Estará a referir-se ao nosso espaço de serviço público – "A Escuta do Dia"?
– Que eu saiba é o único que emitem sobre escutas.
– Temos outro, com outro género de escutas, mas está ainda por estrear. Se a senhora estiver atenta à nossa programação irá...
– É precisamente sobre a programação que eu quero reclamar!
– Há algum problema com a programação?
– Há sim, há problema! O senhor sabe perfeitamente que há problema e não é primeira vez.
– Se tivesse a gentileza de ser mais... explícita...
– Então o senhor não está a seguir a emissão?... o que estão neste momento a emitir, não está a seguir?
– Claro, tenho um monitor aqui mesmo à minha frente.
– Diga-me então o que tem que ver a gravação que estão a transmitir com o que foi anunciado.
– Ah, pronto, já entendi!
– O que está anunciado, para esta hora, na vossa estação, é uma conversa integral e muito privada entre o primeiro-ministro e o cardeal-patriarca. É essa conversa que está na programação!
– Na verdade, minha senhora, tem toda a razão. Tivemos de fazer uma alteraçãozinha por motivo alheio à nossa vontade.
É uma tristeza verificar que alguns órgãos de informação se dispõem a quebrar os mais básicos deveres éticos. Aconteceu – pelos vistos a senhora não sabe – que um jornal desta manhã se antecipou e publicou essa conversa todinha e cá com um destaque!
– Por muito destaque que um jornal dê a uma conversa privada nunca é a mesma coisa que ouvi-la... assim... de viva voz. Pode lá comparar-se!
– Nesse aspecto, estou de acordo com a senhora. Mas reconhecerá que as conversas de substituição que por vezes pomos no ar também não são desinteressantes...
– Ai, não diga isso! Já não há pachorra para repetições como aquela que estão sempre a passar, aquela da conversa nocturna entre uma líder da Oposição e um deputado do mesmo partido, aquele infeliz que padece de asfixia, tá a ver?
– Sim, no entanto… essa conversinha… humm… tem um picantezinho especial... não acha?... Há ali partes… hi hi hi...
– Por favor! Conversas de chacha. Novelas de pátio das osgas. É como esta, a que estão a transmitir agora, entre o sucateiro e o banqueiro. Também já é a terceira vez que a ouvimos. Que seca! Aquela gente passa a vida a falar de "quilómetros", "barrotes", "tijolos"...
– Posso esclarecer. Um "quilómetro" representa mil euros.
– Ah, não sabia.
– E um "barrote" equivale a um maço de cem notas. São termos utilizados pelas pessoas habituadas a movimentar dinheiro. O "tijolo", por exemplo, é de arromba: pacote de dez maços de cem notas.
– Então deviam pôr legendas! A gente assim não compreeende nada!
– É uma ideia a ter em conta, sim-senhora. Creia que não poupamos esforços para satisfazer o público. Agora mesmo está em curso um plano ambicioso no sentido de que uma conversa possa ser de imediato transmitida em directo. Será o "Especial Escuta Directa". Essas, é inevitável, serão sempre integrais.
– Então as outras não são integrais?
– Bem… Convém por vezes fazer um tratamento editorial. Certas coisas não se quadram no nosso Estatuto Editorial. A senhora deverá saber que esta estação é muito zelosa quanto aos princípios da educação e da moral.
– Está a falar das grosserias, daquela linguagem…
– Isso ainda é o menos. Põe-se por cima um “piiii” e pronto. Outras coisas tornam mesmo indispensável um tramento editorial. Em relação ao “Especial Escuta Directa”, aí não há nada a fazer. As conversas terão de ser emitidas em estado bruto, salvo seja. Se começarem a aquecer, pespega-se a bolinha no canto.
– Ui!... está a abrir-me o apetite… Quando começa?
– Aguardamos apenas o parecer da Entidade Reguladora para a Comunicação que em princípio não colocará entraves desde que os escutados não sejam os próprios membros da ERC. Eles agora até deram em imitar o presidente da República e o primeiro-ministro, mudam de telemóvel todos os dias, os malandros…
– Essa gente das regulações sempre foi muito esquisita.
– É verdade. Mas nós sabemos como lhes dar a volta. Vamos negociar, temos gravações muito comprometedoras... hi hi hi..., não se comparam com as que eles interceptaram ao nosso Director.
– Espero que no meio de tudo isso não fique esquecida a reclamação que me levou a telefonar.
– Comunicarei ao Director numa próxima oportunidade.
– Acho que devia comunicar já.
– Já-já é um tanto difícil, estamos todos muito ocupados com a estreia do novo programa de que falei à senhora, no início – o "Diz que se disse na mesa ao lado". No entanto, acredite, não tardarei a contactar o Director.
– Que ele não interprete mal. Afinal o que eu e todo o público pretendemos é apenas que a vossa estação tenha por nós algum respeito, que nos oiça. Tome boa nota disto!
– Esteja descansada. Tá a gravar

Pedro Foyos
Jornalista

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Um esqueleto no cadastro do repórter


Dois queridos camaradas de ofício, o Fernando Correia e a Carla Baptista, tiveram há tempos a bela ideia de reunir num volume as memórias de jornalistas provindos da recuada época em que não existiam computadores. Nem gravadores portáteis. Nem sequer máquinas de escrever (já haviam, porém o advento nas redacções ocorreu apenas na transição da década de 50 para a de 60).

Mas já se comia com garfo e faca e, até, em algumas redacções mais progressistas começava a abrir-se a cancela às mulheres (encontram-se nesse livro vários testemunhos – incluindo o meu – acerca dessa experiência emocionante). Era o tempo em que Lisboa não possuía ainda semáforos e os polícias sinaleiros abriam o trânsito para dar passagem aos "carros dos jornais" (em troca recebiam o jornal do dia e, pelo Natal, uma garrafa de espumante!... E com tais despudorados e devassos procedimentos se cometia então o “tráfico de influências”, para não usar expressão menos polida) .
Retomando o fio: Espinhoso foi o caminho que levou enfim à concretização da antologia de entrevistas "Memórias Vivas do Jornalismo". A habitual via sacra de qualquer autor desprovido do mediatismo dos horários nobres (um outro jornalista, também editor – Francisco Vale – dá notícia num seu livro lançado há semanas: «(...) hoje há editoras especializadas em publicar figuras televisivas com audiências garantidas em "prime time", juntando-lhe um ou outro escritor "sério" descuidado da companhia.»
Não surpreende pois que "Memórias Vivas do Jornalismo" só apareça ao cabo de anos. Tantos que meia dezena de jornalistas representados na colectânea viajaram entretanto, em serviço de reportagem, para estrelas longínquas e decidiram nelas permanecer. Os fenómenos sobrevivos estarão expostos depois de amanhã, quinta-feira, dia 11, a partir das 18h30, na Livraria Barata (Av. de Roma, 11, Lisboa), a fim de fazerem prova de vida mediante autógrafos nos exemplares que os mais incrédulos desejarem testar. Haverá fanfarra, foguetório e falatório a cargo dos doutos “connaisseurs” José Rebelo e Miguel Gaspar.


E finalmente posso revelar o motivo porque nunca se efectivou neste espaço a etiqueta "Retalhos da Vida de um Jornalista", anunciada pelo João Viegas. Na realidade, as minhas "melhores" memórias profissionais estão registadas neste livro e, apesar de muito fragmentadas, sintetizadas e de os anos terem corrido sem que a obra viesse à luz do dia, eu devia aos autores-entrevistadores a fidelidade de as manter inéditas.
Segue-se a narrativa de um episódio em que me vi sugado por um torvelinho de tão grandes apuros que por pouco não cessou naquele momento a minha “promissora” carreira. O relato está longe de representar um dos melhores de entre as largas dezenas que preenchem a antologia "Memórias Vivas do Jornalismo". Creio, todavia, com assumida imodéstia, que poderá "dar o tom" de um livro que transcende o âmbito profissional e, não obstante ser realizado e protagonizado exclusivamente por jornalistas, procura cativar leitores indiferenciados, apreciadores de histórias de vida, contadas de forma saborosa, humorística, por vezes sarcástica.
Pedro Foyos em 1962, na redacção do diário "República"
(...)
Na rotina do funcionamento da redacção, íamos no princípio da manhã...

A partir das oito horas o principal noticiário nacional estava delineado e distribuído. Pelo início de 1963 começou a ser-me atribuído tudo quanto tinha que ver com crimes. Com uma antecipação de quatro décadas em relação à moda da "investigação forense", descobri em mim uma vocação detectivesca... O Laboratório de Polícia Científica iniciara a actividade a meio da década de 50, em condições naturalmente incipientes, mas em poucos anos alcançou o nível da melhor investigação europeia. Realizou-se uma visita de Imprensa na qual participei e o que assisti deixou-me entusiasmadíssimo.

Viu-se como um novo Repórter X da investigação criminal...

Mas longe do mero influxo sensacionalista do Repórter X. A cientificidade da investigação era o que mais me seduzia. Estudei o tema em profundidade, ia à livraria Férin encomendar livros de França porque em Portugal não havia nada. Foi um período da minha vida profissional que me encantou, fiz grandes reportagens policiais, cheguei a ser convidado pela Judiciária para ingressar na instituição!

Como aconteceu essa história?

Nas minhas reportagens avançava com cenários que poderiam conduzir à solução dos crimes, desenvolvia as hipóteses mais prováveis, afastava aquelas que decididamente, na minha opinião, não o eram, elaborava teses, tudo muito científico... Um dia tive de ir à PJ recolher o depoimento de um inspector-chefe, devidamente autorizado pela direcção para comentar um caso já encerrado com êxito e que eu acompanhara de perto, semanas a fio. No fim do encontro, comunicando-me que continuava a seguir as minhas reportagens com o maior interesse, fez à queima-roupa o convite. Que era apenas uma questão de falar com a direcção, o assunto resolver-se-ia em duas penadas. Outro inspector, Alfredo Allen Gomes (desempenhava ao tempo as funções de porta-voz para os órgãos de informação, era uma pessoa muito estimada pelos jornalistas e chegou a ser director da PJ logo após o 25 de Abril), quando me via lá nas reuniões com a Imprensa tratava-me por «nosso futuro colega». Mas antes disso tive grandes problemas com a Judiciária, um bico-de-obra, passei longas horas meio detido...

Passou de "meio detido" a potencial membro da Judiciária?

Um caso muito falado no final de 1963 foi o de um esqueleto humano, do sexo masculino, descoberto por uns rapazes que andavam na brincadeira a pular de rocha em rocha, atrás de um pássaro, nas falésias do Guinho. Um deles, para assustar os outros, escondeu-se numa das grutas e deu de caras, passe a expressão, com o esqueleto. Passados dias, a PJ arrumou a questão com a tese de suicídio, o que acontecia por vezes em relação a casos ocorridos há anos. A verdade é que os investigadores estavam excessivamente enredados em crimes intrincados da actualidade, o tempo não dava para tudo e factos antiquíssimos
estariam longe de merecer prioridade. Entretanto, logo no dia seguinte ao do achado iniciei uma investigação que se prolongou por uma semana. Falei com os rapazes, pesquisei a gruta, recolhi elementos valiosíssimos que tinham escapado aos agentes. E publiquei uma reportagem que contrariava completamente a versão da polícia. A "verdade dos factos" divulgada dias antes por intermédio dos órgãos de informação era por mim desmentida, com provas entregues nesse meio tempo à Polícia Científica. Indicava com objectividade ter ocorrido homicídio e não suicídio. Um caso tétrico, apurei depois, de maridos conluiados para "lavarem" as respectivas honras enodoadas contumazmente... Tive o cuidado de não mencionar a versão oficial, a Censura terá considerado que as informações provinham da própria Judiciária e a reportagem saiu sem um único corte. Bem, foi uma bomba! Nesse mesmo dia a Censura transmitiu aos jornais que o caso do esqueleto do Guincho «está morto, morto e enterrado, acabaram as notícias.» Fui chamado à Judiciária e fiquei mais ou menos detido. Foi assim uma prisão de: «... não pode sair, mas também não está preso, fica aqui.» Mantiveram-me sob um longuíssimo interrogatório, por mil vezes repeti as mesmas coisas. Estavam convencidos de que tinha forjado aquilo tudo, de que era um golpe sensacionalista. Passei de investigador a investigado. Fui levado à "cena do crime", foram reconstituídos todos os meus passos de pesquisa, com instantes terríveis dado que vacilei muito tempo sobre a localização da gruta.

Porquê?

Toda a paisagem de rochedos me parecia igual! Não havia fixado pontos de referência, um procedimento policial dos mais elementares, que tardiamente aprendi. A minha situação era complicada. Um malogro naquele minuto descredibilizar-me-ia, arruinaria para sempre uma carreira jornalística recém-iniciada e sem dúvida seria incriminado por, de certo modo, difamar publicamente uma instituição como a Polícia Judiciária.

Para começo de carreira, não estava mal...

Na verdade, uma encruzilhada dificílima, mas tinha a meu favor o número elevado de indícios de homicídio. Descrevia-os com rigor na reportagem.

Mais do que convicção, pesavam os índícios concretos. Era isso?

Sobretudo o facto de eu provar que o corpo havia sido transportado para a gruta por duas pessoas, uma das quais, na precipitação do acto, cometera a incúria de perder um objecto pessoal que não era relacionável com a vítima. Um detalhe importante, entre outros. E confiava na proficiência do Laboratório Científico da PJ, para onde havia sido encaminhado o material por mim colectado na areia, mas não excluía a hipótese de alguém, naqueles tempos e para salvar a face da corporação, poder escamotear os resultados. Para minha fortuna tudo foi rigoroso e isento, concluindo-se que a areia solidificada no esqueleto era geológica e temporalmente coincidente com as provas por mim recolhidas. Os demais indícios avançados – numerosos, fundamentados – confluíam também com verosimilhança para o cenário de um homicídio. A Judiciária acabou por reconhecer particularmente a natureza escrupulosa das minhas investigações. Meses depois, quando voltei para recolher o depoimento que referi, o inspector-chefe fez-me o tal convite. Mas o jornalismo já me havia capturado inelutavelmente.

(Continua numa livraria próxima do leitor...)

Nota do 'Galo': Este é o Post 50 do Pedro Foyos numa
colaboração periódica e, no meu entender, de grande originalidade
com alguns temas invulgares e sempre interessantes.
Aqui ficam os nossos Parabéns pelo 'Cinquentenário' !!!

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Na morte do verdadeiro 'Rain Man'

Num dia futuro dispensaremos o Google por desnecessário.

Cada ser humano integrará no cérebro toda a informação do Google acrescida das principais enciclopédias mundiais.
Mas esse dia está ainda um bocadinho longe. Ou talvez não.

Passou despercebida a morte recente de Kim Peek, o homem que no filme Rain Man inspirou a personagem principal, o inesquecível Raymon Babbit. Esta obra memorável de Barry Levinson, estreada em 1988, viria a ganhar quatro Óscares, incluindo o de melhor actor, Dustin Hoffman).
E, no entanto, poucos seres humanos terão concitado, durante a segunda parte do século XX, um tão grande interesse por parte da comunidade científica internacional. Kim Peek sofria desde o nascimento de uma singular enfermidade do espectro autista, deficiência associada à síndrome de Savant. Os "savants", como são denominados, não somam mais de dez por cento dos pacientes autistas, mas Kim Peek era especialíssimo, um "mega-savant" (apenas uma ou duas ocorrências por século). A sua capacidade de memorização era inacreditável, tanto que cientistas do mundo inteiro viajaram para os EUA porque descriam dos relatos difundidos pelas publicações médicas. De facto, Kim Peek retinha toda a informação que lia ou ouvia. Em contrapartida, deparava com dificuldades invencíveis para realizar os mais singelos actos quotidianos, como vestir-se ou calçar-se.
Era o pai, Fran Peek (ainda vivo e autor de um livro sobre o filho), quem tinha de o acompanhar para todo o lado, ajudando-o nas inúmeras e triviais tarefas diárias, ao longo de 58 anos de vida.

É longo, nesse livro e em revistas científicas, o repositório de "façanhas" de Kim Peek. Ingressa-se no género "a realidade ultrapassa a ficção". Tentemos uma síntese: com dois anos, Kim já conseguia ler e memorizava largos trechos dos livros; com 16 memorizou toda a obra de Shakespeare; em 2006, com 55 anos, Kim Peek sabia de cor 7 500 livros, entre os quais a Bíblia e volumosas enciclopédias. Depois disso foram enumerados 12 mil livros memorizados; todavia, por testemunho científico, o cômputo validado correspondeu apenas aos referidos 7 500.

A síndrome de Savant pode ser congénita ou adquirida após um dano cerebral. Característica recorrente nos "savants" é a de apresentarem, em termos volumétricos, grandes cabeças. Alguns cientistas observam cautelosamente nem sempre ser correcta a sinonímia grande cabeça = grande cérebro = grande inteligência, embora, no caso de Kim Peek, lhe tivesse sido reconhecida uma inteligência mediana ou mesmo acima da média.

Interessante coincidência, sem relação directa com Kim Peek: seis dias depois da sua morte, o diário Público preenchia mais de metade da primeira página com uma chamada para a entrevista de Ana Gerschenfeld, publicada no interior, com o paleontólogo francês Yves Coppens. Título: "Vamos tornar-nos cada vez mais cabeçudos". À pergunta "Como vamos evoluir?", Coppens responde:
«Vamos transformar-nos noutra coisa. Não em mil ou dois mil anos, mas mais para a frente: vejo um desenvolvimento do encéfalo, do cérebro, que vai tornar-se mais complexo, mais denso, mais rico em neurónios, com mais sinapses, mais volumoso também – o que quer dizer: partos mais problemáticos. Mas isso pode resolver-se naturalmente com uma redução do tempo de gestação, dando ao crânio da criança a possibilidade de crescer tranquilamente fora da barriga da mãe.»
Sorri. O escritor e cientista Carl Sagan é um dos meus dilectos. Morreu prematuramente, deixando uma obra magistral que gosto de revisitar.
Em Os Dragões do Éden Sagan apresenta ao leitor uma série de factos a partir dos quais desenvolve teorias cristalinas. Há cem mil anos, o cérebro humano já era um problema para as parturientes. Continua a sê-lo, cada vez mais, a ponto de violentar a própria biologia matricial. Somos únicos, irrepetíveis, acidentais. «O parto», nota Sagan, «só é doloroso para uma espécie de entre milhões existentes na Terra: os seres humanos. (...) consequência do contínuo aumento do volume craniano.»
Coppens, na entrevista ao Público, tem razão ao vaticinar um futuro de super-sapiens cabeçudos: «Em vez de termos 1 500 centímetros cúbicos de volume craniano, o que não é nada, vamos ter 5 000 centímetros cúbicos.»
Curiosa a expressão «não é nada». Este é o momento de chamarmos ao palco um dos maiores estudiosos mundiais do cérebro humano, o lendário biólogo evolucionista John Eccles (Prémio Nobel de Medicina, 1961) que confirma: os Neandertalienses, há cem mil anos, tinham cérebros praticamente tão grandes como os nossos.
 
Esta gravura, do próprio Eccles, mostra quatro crânios fósseis vistos de perfil, sendo que os dois superiores (a) e (b) são modernos e os inferiores (c) e (d) representam o Homem de Neandertal. As diferenças são mínimas, sendo manifesto, contudo, que os crânios anatomicamente modernos descrevem uma caixa cerebral mais alta e mais redonda. Significará isso que nos distinguiremos dos Neandertalienses tão-só por um punhado de centímetros cúbicos acrescidos ao cérebro? Claro que não. Porque a evolução agrega não só a volumetria e a forma mas também e sobretudo a complexidade. E a uma velocidade cada vez maior. Mais cérebro, mais complexidade, mais velocidade. O nosso ritmo evolutivo é incomparavelmente superior ao percurso temporal que o Homo habilis fez para chegar a sapiens. Yves Coppens exemplifica com bom humor: «Apenas um bocadinho de cérebro a mais e sobe-se logo para o nível acima. Acontece como nos impostos: basta ganhar mais uns cêntimos para passar para o escalão superior e pagar três vezes mais...». Ou seja, não teremos de esperar cem mil anos para obter o acréscimo de "cubicagem" que nos separa dos Neandertalienses.

Mas... que papel desempenha Kim Peek na grinalda destes acontecimentos fantásticos? Inspirar-me-ei no estilo de Coppens para o exemplo seguinte, imaginando que o cérebro de Kim seria um supercomputador construído por nós próprios. Fomos escrupulosos e sábios em todo o processo de fabrico, equipámo-lo com um incomensurável espaço de memória, deveras inusual, porém cometemos a inadvertência de fazer todo esse trabalho na parca estrutura de um computador doméstico. O resultado imediato, tão logo o pusemos a funcionar, foi quase crashar. Mas aguentou-se, espantosamente. E armazenou a diluviana informação que sobre ele jorrámos. Infelizmente não foi possível evitar alguns danos colaterais. A todo o momento lhe detectamos deficiências de operacionalidade no sistema motor. Quando empreendermos a construção de um novo computador tentaremos suprir esse erro de desproporção física, procedimento jamais exequível em relação ao cérebro de Kim Peek.

A Ciência vangloriou-se com esta prova real do potencial inimaginável do cérebro humano, mas Kim Peek saiu derrotado. Uma vida tropeçuda de olhares e gestos enviesados, passos instáveis, palavras entarameladas. De nada valerá sabermos de cor toda a informação contida no Google e conseguirmos papaguear página a página as principais enciclopédias mundiais se, acto contínuo, tivermos de pedir a alguém o favor de nos meter o sapato no pé.

Lamento agora ter de encerrar com más notícias. O género Homo não existirá na Terra daqui a centenas de milhares de anos. Muito antes de alcançar os 5 000 centímetros cúbicos de volume cerebral, como pretende Coppens, este planeta, exangue, devastado, ter-se-á rendido. Estaria preparado, vá lá, para continuar a acolher o Homo erectus, esse pacóvio que não vai além de mil e picos centímetros cúbicos cranianos. Mais do que isso… logo começa a escangalhar a Criação.
No entanto, é possível que tal não signifique a extinção dos super-sapiens-cabeçudos. No apogeu evolutivo dos dois ou três mil centímetros cúbicos de cachimónia cerebral estarão aptos a migrar para as estrelas. Terão muito por onde escolher: cem mil milhões de destinos na nossa galáxia, entre cem mil milhões de outras galáxias.
Mas ai, coitadas das estrelas.


 
 
 
Pedro Foyos
Jornalista