terça-feira, 9 de março de 2010

Na morte de Rogério Fernandes

Tive uma vida académica privilegiada quanto a grandes professores. Cito dois, apenas no segmento dos historiadores e filósofos notáveis: Joel Serrão e Rogério Fernandes. Mais tarde, já jornalista, entrevistei-os a quase todos, com a prosápia de quem deseja demonstrar aos mestres que o antigo e inexperto praticante da vida airada fizera-se gente e por nada no mundo os deixaria ficar mal.

A entrevista a Rogério Fernandes, publicada em 1961, foi muito golpeada pela Censura. O movimento existencialista alvoroçava então uma parte da juventude universitária e tentei que o meu professor abordasse o tema numa linguagem acessível. As provas de Censura, que preservo e acabo de revisitar, são bem esclarecedoras da ingratitude de tal missão. Os censores não permitiam qualquer pensamento desenvolvido a partir de nomes como Sarte, Camus ou Simone de Beauvoir (esta, aliás, não tardaria a entrar no Index Prohibitorum, onde permaneceu largos anos). Mas o espírito desassombrado e progressista do professor doutorado em História e Filosofia da Educação ilumina-se nesta frase que, por inadvertência ou insciência, a Censura indultou: «Importaria relacionar o ensino da Filosofia com outros sectores da Cultura – o romance, o cinema, o teatro, as artes plásticas. (…) No campo da Ética, por exemplo, seria também interessante que os nossos manuais incluíssem documentação apropriada sobre problemas da vida.»

Este era o professor que chegava à sala de aula – aula de Filosofia! – com uma braçada de jornais e depois convocava os alunos para a reflexão e discussão do noticiário do dia…
Rogério Fernandes foi proibido de ensinar. Nada de mais cruel poderá conceber-se em relação a uma pessoa que, tendo nascido para ensinar, tendo o ensino como paixão e razão de vida, se vê expulso do ensino. Essa era uma das nossas cumplicidades. Eu conhecia bem o drama. Quando nasci já o meu avô paterno se encontrava igualmente proscrito («de todas as escolas do País»), ele que havia sido uma figura prestigiosa na democratização do ensino durante a I República, director de um estabelecimento histórico, o Colégio Parisiense em Lisboa, e que Salazar condenaria a viver até ao último dos seus dias a dar explicações particulares numa exígua sala de um terceiro andar da Av. Sacadura Cabral, em Lisboa. De permeio ia publicando manuais escolares, abarcando todas as disciplinas, da Gramática à Aritmética e Geometria, pois existiam duas chancelas editoriais sempre solidárias para com os desterrados pelo regime (a Biblioteca Cosmos, fundada por Bento Jesus Caraça, e a Gomes & Rodrigues, no Largo de D. Estefânia, aonde o meu avô me levava pela mão, a outra apertando pundonorosamente o manuscrito.)

Depois do 25 de Abril, o nome de Rogério Fernandes readquiriu notoriedade, também como reformador. Foi um dos impulsionadores das reformas do ensino primário, ficando a dever-se-lhe em grande parte o prolongamento da escolaridade obrigatória. Durante dois anos exerceu o cargo de director-geral do Ensino Básico, logrando a concretização de projectos que acalentava há décadas.

Acompanhei à distância a sua dissidência partidária. Chegou a sentar-se no Parlamento como deputado do PCP, mas nunca o consegui ver sob o fato apertado de “homem de partido”. Não me surpreendeu por isso o termo de uma militância (sempre ao lado de outro historiador, Augusto da Costa Dias) que remontava a uma das épocas mais ominosas da Ditadura. Esses são episódios da pequena crónica. A grande crónica para a qual quero reverter a memória terna de Rogério Fernandes é a do tempo do heroísmo sem heróis, das solidariedades singelas e tão imensas. Por exemplo, a solidariedade sem história que o envolveu quando foi director da Seara Nova, uma das raras vozes da resistência. Eu conto:

A situação financeira da revista era aflitiva. Do ponto de vista empresarial, os “quadros” confinavam-se ao próprio director e a parcos colaboradores voluntariosos que, remunerados precariamente, amanhavam como podiam o expediente administrativo. Tamanha era a penúria que nem dinheiro havia em caixa para o cíclico recrutamento do pessoal incumbido de uma operação crucial – as etiquetas postais. Demoraria ainda o advento das fotocópias, e cada número da publicação – adquirida sobretudo por meio de assinatura – implicava a escrita à mão, a partir de ficheiro, de alguns milhares de etiquetas para a expedição pelos correios.

Certo dia, os jornalistas do diário República tiveram conhecimento da dramática situação. A Seara Nova estava impressa, pronta a ser expedida para os assinantes, e o director Rogério Fernandes passara toda a noite a escrever etiquetas. E que só ia na casa das poucas centenas. De imediato se organizou um plano socorrista, por turnos, com o fim de, sem prejuízo do serviço do jornal, se acudir à crise seareira. Foi assim que eu e outros jornalistas fizemos nessa tarde e noite sucessivas viagens à sede da revista para copiar milhares de nomes e respectivos endereços. Procedimento repetido, pelo menos, em dois números sequentes da revista. E numa dessas vezes, se bem me lembro, só por minha conta ficaram manuscritas trezentas fichas. Com elevado esmero caligráfico para não haver extravios






Pedro Foyos

Jornalista

Um comentário:

  1. Interessantíssima memória!
    Na aspereza dos momentos da vida, as forças unem-se! Valha-nos isso!

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