A entrevista a Rogério Fernandes, publicada em 1961, foi muito golpeada pela Censura. O movimento existencialista alvoroçava então uma parte da juventude universitária e tentei que o meu professor abordasse o tema numa linguagem acessível. As provas de Censura, que preservo e acabo de revisitar, são bem esclarecedoras da ingratitude de tal missão. Os censores não permitiam qualquer pensamento desenvolvido a partir de nomes como Sarte, Camus ou Simone de Beauvoir (esta, aliás, não tardaria a entrar no Index Prohibitorum, onde permaneceu largos anos). Mas o espírito desassombrado e progressista do professor doutorado em História e Filosofia da Educação ilumina-se nesta frase que, por inadvertência ou insciência, a Censura indultou: «Importaria relacionar o ensino da Filosofia com outros sectores da Cultura – o romance, o cinema, o teatro, as artes plásticas. (…) No campo da Ética, por exemplo, seria também interessante que os nossos manuais incluíssem documentação apropriada sobre problemas da vida.»
Este era o professor que chegava à sala de aula – aula de Filosofia! – com uma braçada de jornais e depois convocava os alunos para a reflexão e discussão do noticiário do dia…
Rogério Fernandes foi proibido de ensinar. Nada de mais cruel poderá conceber-se em relação a uma pessoa que, tendo nascido para ensinar, tendo o ensino como paixão e razão de vida, se vê expulso do ensino. Essa era uma das nossas cumplicidades. Eu conhecia bem o drama. Quando nasci já o meu avô paterno se encontrava igualmente proscrito («de todas as escolas do País»), ele que havia sido uma figura prestigiosa na democratização do ensino durante a I República, director de um estabelecimento histórico, o Colégio Parisiense em Lisboa, e que Salazar condenaria a viver até ao último dos seus dias a dar explicações particulares numa exígua sala de um terceiro andar da Av. Sacadura Cabral, em Lisboa. De permeio ia publicando manuais escolares, abarcando todas as disciplinas, da Gramática à Aritmética e Geometria, pois existiam duas chancelas editoriais sempre solidárias para com os desterrados pelo regime (a Biblioteca Cosmos, fundada por Bento Jesus Caraça, e a Gomes & Rodrigues, no Largo de D. Estefânia, aonde o meu avô me levava pela mão, a outra apertando pundonorosamente o manuscrito.)
Depois do 25 de Abril, o nome de Rogério Fernandes readquiriu notoriedade, também como reformador. Foi um dos impulsionadores das reformas do ensino primário, ficando a dever-se-lhe em grande parte o prolongamento da escolaridade obrigatória. Durante dois anos exerceu o cargo de director-geral do Ensino Básico, logrando a concretização de projectos que acalentava há décadas.
Acompanhei à distância a sua dissidência partidária. Chegou a sentar-se no Parlamento como deputado do PCP, mas nunca o consegui ver sob o fato apertado de “homem de partido”. Não me surpreendeu por isso o termo de uma militância (sempre ao lado de outro historiador, Augusto da Costa Dias) que remontava a uma das épocas mais ominosas da Ditadura. Esses são episódios da pequena crónica. A grande crónica para a qual quero reverter a memória terna de Rogério Fernandes é a do tempo do heroísmo sem heróis, das solidariedades singelas e tão imensas. Por exemplo, a solidariedade sem história que o envolveu quando foi director da Seara Nova, uma das raras vozes da resistência. Eu conto:
A situação financeira da revista era aflitiva. Do ponto de vista empresarial, os “quadros” confinavam-se ao próprio director e a parcos colaboradores voluntariosos que, remunerados precariamente, amanhavam como podiam o expediente administrativo. Tamanha era a penúria que nem dinheiro havia em caixa para o cíclico recrutamento do pessoal incumbido de uma operação crucial – as etiquetas postais. Demoraria ainda o advento das fotocópias, e cada número da publicação – adquirida sobretudo por meio de assinatura – implicava a escrita à mão, a partir de ficheiro, de alguns milhares de etiquetas para a expedição pelos correios.
Certo dia, os jornalistas do diário República tiveram conhecimento da dramática situação. A Seara Nova estava impressa, pronta a ser expedida para os assinantes, e o director Rogério Fernandes passara toda a noite a escrever etiquetas. E que só ia na casa das poucas centenas. De imediato se organizou um plano socorrista, por turnos, com o fim de, sem prejuízo do serviço do jornal, se acudir à crise seareira. Foi assim que eu e outros jornalistas fizemos nessa tarde e noite sucessivas viagens à sede da revista para copiar milhares de nomes e respectivos endereços. Procedimento repetido, pelo menos, em dois números sequentes da revista. E numa dessas vezes, se bem me lembro, só por minha conta ficaram manuscritas trezentas fichas. Com elevado esmero caligráfico para não haver extravios
Pedro Foyos
Jornalista
Interessantíssima memória!
ResponderExcluirNa aspereza dos momentos da vida, as forças unem-se! Valha-nos isso!