2. O MILAGRE DA POMADA BALSÂMICA
Citação:
«Mas como foi isto, meu Deus?
Como foi isto? Que milagre foi este?
(...) Maria Santíssima!
Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais
Foram perturbados os meus verdíssimos anos de menino-órfão de mãe. Aos sete anos e meio, quas'oito, expediram-me para um colégio modelar na região centro do País. Um estabelecimento de ensino sui generis, vincado cariz militar, vestíamos farda, o bivaque era obrigatório quando íamos em passeio ou tínhamos de marchar. Dispúnhamos de uma farda muito bonita para os dias festivos: azul escuro, botões dourados, o luzente emblema do colégio bordado também a ouro. Era com essa farda que nós, garbosos e de alma derretida, marchávamos pelas ruas da cidade. Alegria efémera. A tristeza chegava à noite quando, na camarata silenciosa, tentávamos apagar sob a roupa da cama o lume vivo das lágrimas e das memórias.
As placas tectónicas da minha vida já estavam imensamente desajustadas quando, por razões que não consigo recordar, transitei do rito militar para a iniciação religiosa. O novo colégio, em Lisboa, era administrado por padres católicos. Continuei em regime de internato. Tive então de decorar uma boa dezena de orações, rezadas em voz alta no decurso do dia: antes da primeira aula da manhã, antes e depois do almoço, antes da primeira aula da tarde, antes e depois do jantar, na camarata, perfilados ao lado da cama, e noutras ocasiões avulsas. Decoravam-se as rezas por ouvido, prestando atenção às palavras moduladas pelos colegas mais velhos. Cometi um erro de interpretação que perdurou por longuíssimo tempo. Pronunciava, com absoluta inocência, eu pescador me confesso. Quando dei conta do engano, achei divertido continuar a assumir-me como pescador. E passei a entoar a palavra-lapso com desafiante sonoridade, mas, para minha grande frustração, ninguém se apercebeu da heresia fonética.
Uma tarde queixei-me de arrepios de frio e de ardor na garganta. O padre Ezequiel pôs a mão na minha testa, ordenou-me que fosse para a camarata e metesse na cama, que ele já iria ter comigo para me tratar. Minutos depois, o padre Ezequiel, sentado à beira da cama, tirava-me a temperatura e perguntava, entre zeloso e meloso, onde é que me doía. Logo espetei um dedo denunciador para a garganta, depois para o peito. «Dói-te também o peitinho, é?». Assenti com a cabeça, vigorosamente. O padre Ezequiel retirou-se, um minuto depois regressou com um frasquinho de Vick Vaporub. Descobri então que a eficácia da pomada era maior quando aplicada à distância deslizante de alguns palmos da garganta e do peito, regiões que mereceram tão-só umas pinceladas despachadíssimas. Com mais vagar e a doçura de um tocador de cítara, o padre pôs-se a dedilhar a pomada abaixo da cintura. Imediatamente abaixo, latitude Sul, se é que me faço entender.
De medicina pouco ou nada sei, todavia posso garantir que aquele unguento canforoso foi uma dádiva dos céus. À hora do jantar, quando o padre Ezequiel voltou à camarata para nova terapia, já não me encontrou lá. Eu estava no refeitório, vivaz, são como um pero. Maria Santíssima! Os sintomas prégripais não duraram um credo, pode dizer-se que as dores na garganta e no peitinho foram entrada por saída. Vendia saúde mas ao mesmo tempo dominava-me o receio de vir a saber-se que naquela santa casa acabara de ocorrer uma cura milagrosa. Por muito menos, creio, terá sido declarada a canonização de tanta gente votada ao sublime ministério da virtude.
terça-feira, 11 de maio de 2010
IIIII RECEITUÁRIO DOMÉSTICO IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII Como endiabrar a visita de Sua Santidade com historietas um nadinha inconvenientes
O autor deste Receituário, cumprindo a missão de que está investido (elucidar o cidadão baralhado sobre a complexidade do mundo actual), recorre excepcionalmente, na segunda crónica inspirada na visita de Bento XVI, a episódios da sua vida pessoal. Fica assim justificado o uso da primeira pessoa.
Jornalista
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Traço Descontínuo
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