quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Bem-vindo, Mr. George Orwell, ao País das "escutas" e dos pequenos"brothers"

Suponho que nenhum país do mundo, exceptuando Portugal, está a celebrar de forma tão efusiva, autêntica, inspirada, os sessenta anos da publicação da célebre distopia literária "1984", de George Orwell. A data é apenas uma menção fantasmática. Na verdade, esse facto transmitiu ao livro uma histórica auréola profética, todavia o que Orwell fez, simplesmente, foi trocar os últimos algarismos do ano em que concluiu o romance – 1948. Seria publicado em 1949 (daí os festejos das seis décadas).
O obscuro vocábulo antónimo de utopia é distopia. Ou seja, a utopia às avessas. Os paraísos sonhados convertidos em pesadelos reais. Em rigor, as ficções especulativas centradas no futuro da Humanidade são quase sempre distópicas, nada utópicas. Utilizando um exemplo local: em 25 de Abril de 1974 a quase totalidade da população portuguesa viveu a utopia de um País maravilhoso. Meses depois a utopia começou a esmorecer, poder-se-á dizer que morreu mesmo, mas só passadas décadas se instalou no País uma indisfarçável distopia. O futuro, pelo menos a médio prazo, tinge-se de uma negridão impenetrável.
Do ponto de vista ficcional e histórico a situação não constitui novidade. Nunca uma utopia morreu de velhice. E a maior parte da literatura universal não existiria se se vivesse numa eterna utopia. Ocorre lembrar a escritora Ursula K. LeGuin, que confidenciava detestar as utopias porque eram sempre enfadonhas ou ambíguas.
Pelo contrário, as distopias, com todo o pessimismo de ruptura com visões abúlicas de um mundo de felicidade geral, revelam-se mais estimulantes numa perspectiva de criação ficcional e também muito mais verosímeis como corroboram sem descanso a Política e a Justiça da ditosa pátria.
Quem conheça a famosa obra de Orwell saberá que o universo interiorizado pelo escritor firmava-se na supressão da privacidade, na vigilância omnipresente. Não existiam ainda telemóveis e computadores. Os processos actuais adquirem formas subtis, perversamente veladas, não consciencializadas sequer pela massa sujeita à "normalização". O vocabulário da vigilância enriquece-se agora com expressões como "escutas ambientais" – ou seja, de nada servirá fecharmos portas e janelas porque haverá um Grande Ouvido ou um Grande Olho, ou ambos maquinados, que, infalíveis, lépidos, nos descobrirão.
A tirania e um certo totalitarismo invisível – o Big Brother sem nome e sem rosto – vai esvaziando o homem da autonomia individual do seu pensamento, da apetência para a criatividade, da capacidade de decidir. Com todo o respeito para com os senhores Presidente da República e Primeiro Ministro (nas condições respectivas de muito hipotético escutado e de muito insurgente escutado) direi que as nebulosas, inadmissíveis e sempre sensacionais escutas a que possam estar sujeitos representam uma vilania menor. São duas honoráveis pessoas mas tão-só duas pessoas. O problema aterrador é começar a insinuar-se em todos nós um certo pressentimento orwelliano de metade do País estar a ser escutado, vigiado pela outra metade, constituída por pequenos "brothers", igualmente sem nome e sem rosto, que nos vão encarcerando num "gulag" repressivo do pensamento.

Uma sociedade de escutadores de telefones, de conspiradores e espreitadores, é algo de inquietante. Mas Portugal celebra os sessenta anos do Big Brother com a recriação folclórica de um Big Brother multiplicado por mil. E um programa extra, exuberante, de golpes e contragolpes, faustosas sacanagens, pantagruélicas doses de intrigalhada de altíssimo nível, e ódios fulanizados, e casos, muitos casos ferventes de gritos, de cóleras, e escândalos, e novelas e novelos sem ponta e sem fim, e suspeições, outras suspeições supostamente suspeitosas, e verdades, outras juradas verdades que são mentiras, e mentiras, outras juradas mentiras que são verdades, e segredos revelados, e revelações segredadas...

Ah, Mr. George Orwell, permita que, na toada blasfematória, adite, por minha conta e risco, esta:
Portugal excede-se na celebração e, sorry, ultrapassa-o!



Pedro Foyos
Jornalista

2 comentários:

  1. Não tenho o fôlego do P.F., (parabéns pelo texto !) de modo que vou dar uma definição de distopia entre curto e grosso: significa que básicamente o futuro vai ser uma merda , pessimismo ontológico e amargura na raiz da coisa.

    :-)

    A propósito do texto, aqui ficam as minhas escolhas de sempre: deste autor , os meus livros favoritos, por acaso, são este e também este outro

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  2. Eu sou mesmo pelos mais comuns - o 1984 e o Animal Farm...

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