domingo, 20 de dezembro de 2009

Seres decentes - Fernando Dacosta

Quando cumpria o seu segundo mandato,
Ramalho Eanes viu ser-lhe
apresentada pelo Governo
uma lei especialmente congeminada
contra si.

O texto impedia que o vencimento do Chefe do Estado fosse
«acumulado com quaisquer pensões de reforma ou de sobrevivência»
públicas que viesse a receber.
Sem hesitar, o visado promulgou-o, impedindo-se de auferir
a aposentação de militar
para a qual descontara durante toda a carreira.

O desconforto de tamanha injustiça levou-o, mais tarde, a entregar
o caso aos tribunais que, há pouco, se pronunciaram a seu favor.
Como consequência, foram-lhe disponibilizadas as importâncias
não pagas durante catorze anos, com retroactivos,
num total de um milhão e trezentos mil euros.

Sem de novo hesitar, o beneficiado decidiu, porém, prescindir
do benefício, que o não era pois tratava-se do cumprimento
de direitos escamoteados - e não aceitou o dinheiro.
Num país dobrado à pedincha, ao suborno, à corrupção, ao embuste,
à traficância, à ganância, Ramalho Eanes ergueu-se e, altivo,
desferiu uma esplendorosa bofetada de luva branca no videirismo,
no arranjismo que o imergem, nos imergem por todos os lados.
As pessoas de bem logo o olharam empolgadas: o seu gesto era-lhes
uma luz de conforto, de ânimo em altura
de extrema pungência cívica, de dolorosíssimo abandono social.

Antes dele só Natália Correia havia tido comportamento afim,
quando se negou a subscrever um pedido de pensão por mérito
intelectual que a secretaria da Cultura (sob a responsabilidade
de Pedro Santana Lopes) acordara,
ante a difícil situação económica da escritora, atribuir-lhe.
«Não, não peço. Se o Estado português entender que a mereço»,
justificar-se-ia, «agradeço-a e aceito-a. Mas pedi-la, não. Nunca!»

O silêncio caído sobre o gesto de Eanes (deveria, pelo seu
simbolismo, ter aberto telejornais e primeiras páginas de periódicos)
explica-se pela nossa recalcada má consciência que não suporta,
de tão hipócrita, o espelho de semelhantes comportamentos.
“A política tem de ser feita respeitando uma moral, a moral
da responsabilidade e, se possível, a moral da convicção”, dirá.
Torna-se indispensável
“preservar alguns dos valores de outrora, das utopias de outrora”.
Quem o conhece não se surpreende com a sua decisão, pois as
questões da honra, da integridade, foram-lhe sempre inamovíveis.
Por elas, solitário e inteiro, se empenha, se joga,
se acrescenta - acrescentando os outros.
“Senti a marginalização e tentei viver”, confidenciará,
“fora dela. Reagi como tímido, liderando”.

O acto do antigo Presidente («cujo carácter e probidade sobrelevam
a calamidade moral que por aí se tornou comum»,
como escreveu numa das suas notáveis crónicas Baptista-Bastos)
ganha repercussões salvíficas da nossa corrompida, pervertida ética.
Com a sua atitude, Eanes (que recusara já o bastão de Marechal)
preservou um nível de dignidade decisivo para continuarmos
a respeitar-nos, a acreditar-nos - condição imprescindível
ao futuro dos que persistem em ser decentes.

Fernando Dacosta

Enviado por Maria Moura

2 comentários:

  1. Muito name dropping, sucede o seguinte:

    1. Nunca gostei da maneira como o F.da C. escreve/escrevia, mas ele era amigo de uma das minhas falecidas tias, nunca lhe disse isso nas 'trombas', mas devia ter dito. Acontece...

    2. O Eanes... o Eanes foi aluno do meu Pai na Academia Militar e era amigo/colega de um outro amigo meu que não nomearei (que é/foi militar e prof. de História numa Univ. que também não identificarei).

    O Eanes é um gajú decente.

    Ajudei a eleger (re-eleger ?) ele contra aquele imbecil dos comandos, many years ago. Não fiquei lá para os "cumprimentos"...
    O Eanes não é grande estaca, mas o que prometeu, cumpriu, está dito e acabou, por aqui fica.



    A Natália Correia que vivia na Graça, na Vila Berta era amiga da minha ex.

    Às vezes "aquilo" não saía de onde devia, mas ela era uma das mulheres mais lindas de Lxª (junto com a mulher do António Ferro), e uma poetisa de se considerar.

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  2. Natália Correia e Ramalho Eanes, duas pessoas com coluna vertebral.

    Natália Correia era, de facto, uma mulher muito bonita.
    Mas odiava ser reconhecida por isso...

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