sexta-feira, 23 de abril de 2010

João Botelho da Silva

Este texto foi escrito para um livro póstumo.
Dedico-o a quantos, algum dia, se interrogaram:
– Por que nascemos se temos de sofrer?
– Por que nascemos se temos de morrer?

João Botelho da Silva morreu pouco tempo depois de entregar à editora o original deste livro. Uma obra póstuma aos 27 anos é um facto brutal, insuportável. Esmaga pela opacidade absoluta das razões que não conseguimos decifrar – porque são, realmente, numa vagarosa e dilacerante evidência, indecifráveis. Tratando-se, como é o caso, de um dos mais significativos escritores portugueses dos nossos dias, tal circunstância redobra o obsessivo efeito de revolta.

(...) Deixou um livro publicado (Beduínos a Gasóleo, romance portentoso, Prémio Caminho de Ficção Científica) e um valiosíssimo espólio literário em prosa e poesia.
Concluído e entregue à editora ficou este livro de contos. Concluído? Vacilo e comovo-me porque o vocábulo não é inteiramente exacto. Guardo na memória, como um fotograma luminoso num filme longínquo, o dia em que o João me entregou o original. Costumava pedir-me a leitura e análise das suas ficções, antes de publicadas, fazendo o mesmo com seu Pai, o jornalista Botelho da Silva, e sua mulher, Isabel. Comigo brincava, nessas ocasiões: «Em antestreia exclusiva para a excelentíssima crítica!» Era uma alusão chistosa ao facto de eu assinar, nos últimos três anos, no suplemento Cultura do Diário de Notícias, uma secção de crítica literária. Ambos jornalistas daquele matutino, amiúde lhe antecipava, igualmente, os meus textos destinados à coluna. É preciso dizer, agora, que muitas das minhas ideias, das minhas palavras escritas, lhe deviam a consciência subliminar e estimulante das suas experiências, da sua cultura, dos seus sentidos, do seu mundo fantástico. Uma partilha límpida, como a pulsação essencial à artéria, porém subjacente, invisível. Um companheirismo germinado, singularmente, na paixão comum por um género literário e que foi crescendo na vivência fraterna de sonhos, projectos, descobertas, permutas, alegrias e secretas cumplicidades. Tudo isso num voo pleno, sem escalas geracionais: a minha idade quase dobrava a dele.

Por outras razões tinha aquela secção um especial significado. Ali lhe foi feita a primeira referência como autor literário. (Um pacto, na ocasião: eu renunciaria a empregar a detestada expressão «promissor», reportada ao seu talento; em contrapartida, ele obrigar-se-ia a acolher as minhas presunçosas sugestões... «bem, cinquenta por cento», concedeu.) Ali se celebrou o prémio com que a Caminho o distinguiu. No mesmo local se publicou aquela que seria a primeira crítica a um livro seu. Quase mais entusiasmado do que ele, alvitrei no jornal uma grande entrevista, que efectivamente me autorizaram a fazer-lhe e se publicou em três páginas. (Sem coragem para enfrentar a Redacção, o João gozou, nesse dia, uma folga atrasada.) Volvida uma semana apresentei-lhe o romance de estreia em sessão pública, coisa que jamais pensaria fazer com quem quer que fosse e jurei que não se repetiria. Tento dizer, simplesmente: eu vivia, com intensidade, a aventura da sua imaginação. Talvez se perdoe, por isso, a tentação da despedida, o inevitável lugar-comum do texto sentimental, a pieguice tão falha de originalidade, e neste momento adivinho-lhe a reprovação mordaz: «Oh, não!, mete o violino no saco!»

Apressado, a escrita vertiginosa ultrapassava-o por vezes na reflexão. Nos últimos tempos angustiavam-no incertezas relacionadas com os seus contos admitidos para publicação. Manifestava certa contrição pela entrega, porventura precipitada, do original à editora. Disso me deu conta, logo naquele dia – fragmento inapagável na minha memória – em que me confiou uma cópia: «O livro já está na editora, não te espantes, mas olha, deu-me para ir levá-lo. Não fiques preocupado, o processo de feitura é tão lento que dará para introduzir todas as alterações que virmos ser necessário.»
Tomei o peso da resma que me passava para as mãos e olhei-o cheio de perplexidade, sem entender a razão daquela impaciência.

(...) Eu fazia um esforço desajeitado para não o envaidecer. Terminada a leitura do livro, projectei enviar-lhe uma mensagem através do circuito informático interno do jornal. Uma frase breve, grave, do género: «Escreveste algumas das melhores páginas da literatura portuguesa de todos os tempos.» Sabe-se que o temor pela reverência excessiva leva a refreios autocensórios. Portanto, ao reler a frase, talvez a alterasse para: «Pois bem, João, creio que terás escrito algumas das melhores páginas da moderna literatura portuguesa.» Mas não cederia mais do que isso. E sorriria ao imaginar a reacção costumada de certos bem-pensantes se resolvesse um dia publicar essa opinião: «Tudo certo, mas... o meu amigo queria referir-se à literatura de ficção científica, não é verdade?» Não, não é verdade.
Claro que não enviei mensagem alguma ao João. Existem tácticas manhosas que não devem ser desvendadas. Refira-se, tão-só, que um elogio desmesurado pode deitar tudo a perder quando pretendemos que o autor se entregue a um trabalho zeloso de aperfeiçoamento final da obra. Depois, mas só depois, lhe diremos ter realizado uma obra-prima.

O livro que eu acabara de ler carecia manifestamente de uma revisão estilística. Nas margens do texto fizera dezenas de anotações com o fim de o autor considerar a reformulação de expressões repetidas, construções gramaticais, pontuação e um ou outro trecho que, no ânimo das descrições impetuosas, resultara menos inteligível. E o original já na posse da editora!
(...) «Achas que, depois disto tudo, a editora quererá publicar mais algum livro meu?», perguntou-me, uma tarde. Ele acolhia com ingenuidade certas afirmações disparatadas, e terá sido por isso que lhe respondi, sentencioso, desafiante: «Com toda a certeza que não.»

Começáramos a analisar todas essas questões quando...
... de súbito, o seu corpo gritou, num rebate tardio, o avanço do cancro.
Exacto: escrevo cancro, a eufémica "doença prolongada" que urge banir do vocabulário jornalístico.
Depois, foi o terrífico percurso escarpado de angústias, de pânicos murmurados, a esperança estreitando-se nos pobres corações dos seus amigos. O nosso debate foi sucessivamente adiado: «Trata de sair deste hospital», pedia-lhe, «temos a agenda atrasadíssima!» Mas o livro ficou intocado. Fixo agora, vezes sem conta, a "agenda de trabalhos" que permanece aberta, protelada por um desencontro absurdo, incompreensível. Talvez não irremediável. Sempre acontece comigo, nos dias finais, isto: olhando o Sol matinal, por um instante dolorosamente efémero acredito que reatarei conversas antigas.


João Botelho da Silva morreu há quinze anos, que se perfazem hoje.
O livro referido nesta crónica foi publicado mais de um ano depois, com o título "As Horas do Declínio". A edição ficaria marcada por vicissitudes que me impeliram para um corte de relações com o director editorial da Caminho.
Vi pela última vez o meu amigo na manhã em que fui dar sangue, no Hospital Egas Moniz. Morreu nessa semana, a 23 de Abril.
Somos animais cronólogos, servos do sempiterno calendário, não conseguimos fugir aos ritos das datas.
Partilho esta evocação com quantos já perderam um grande amigo e, em certos dias, desejariam escrever-lhe uma carta sem morada.



Pedro Foyos
Jornalista

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