quarta-feira, 15 de julho de 2009

Trinta segundos

Começou por lembrar-se da importante reunião que fazia daquela viagem uma viagem a reter e passou rápida e mentalmente pelos documentos confidenciais arrumados no fundo da pasta fechada com um código de segurança que ele próprio desconhecia para de repente se lembrar do telefonema que a irmã lhe fizera na véspera anunciando que ia ser operada sim era maligno embora não soubesse ainda quão maligno para já não iam dizer nada à mãe vamos deixar passar o natal dissera ela e ele a lembrar-se do primeiro natal sem o pai não sofrera demasiado o pai mas o último internamento tinha-se feito mesmo anunciar como o último já sem conseguir comer e com fralda e aquele rosto entre a súplica e a despedida na última visita ficas bem e ele a saber que no dia seguinte já não o encontraria era sempre assim conseguia pressentir os últimos momentos de qualquer situação como quando o telefone tocou naquela noite e ouviu a voz da mãe do outro lado sem falar e ele só teve tempo de soltar um enorme grito vindo das entranhas e largar o telefone que ficou pendurado e o momento em que o padre recita que deus sabe o que faz e temos de nos resignar nunca se resignou e agora até sorria a lembrar-se fugidiamente porque é que o irmão se ia divorciar afinal a mãe tinha razão a nossa vida dava um guião para o almodôvar onde há sempre uma lésbica e um doente terminal e um morto em circunstâncias sórdidas a mãe sempre a manter a realidade muito real para não se desintegrar de vez e ele volta a pensar na reunião importante o que iria acontecer agora sim ele tinha avisado que era melhor enviar os documentos por avião e ele chegaria depois seria agora que se iam confirmar as suspeitas de que conseguia sempre anunciar o que ainda não tinha acontecido e foi neste momento que o carro se imobilizou e ele só sabia que estava ali e que conseguia mexer-se mas não conseguia perceber em que posição estava quando viu a cara de um bombeiro ao contrário a querer abrir a porta do carro sem conseguir e depois mais um e outro naquilo a que ele já tinha ouvido chamar desencarcerar e foi aí que se viu dentro de uma ambulância cheio de saquinhos e tubos.
No dia seguinte acordou no hospital com uma festa da mãe e disse-lhe: “agora sim, temos o trailer do filme da nossa vida”.

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2 comentários:

  1. Pinta...
    Do melhor que tem aparecido no Galo, em forma e conteúdo.
    Obrigada!

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