terça-feira, 28 de julho de 2009

Dia da Natureza

Hoje, Dia da Conservação da Natureza, a minha celebração será meditativa, reflexiva. Também desassossegada, porque o fanatismo, de que iremos tratar, é um enlouquecimento lúcido, racional, embora rompa com a racionalidade. Uma razão sem razão. Este paradoxo é tão irregenerável quanto o género humano, instável, misterioso: o esplendor e as trevas, sobrepostos.

Após a implantação da República, em 1910, existia uma única celebração anual relacionada com a Natureza, a "Festa da Árvore", acto extraordinariamente incentivado pelo novo regime e que se converteria num popular movimento cultural e cívico à escala nacional. Todavia, as forças conservadoras viam tais festividades como processos de idolatria pagã e uma forma de os «inimigos da Igreja» propagandearem os novos ideários «naturalistas e ateus». Assistiu-se então a uma campanha de crescente hostilidade que, em 1914, redundaria numa insana violência. Entre os meses de Abril e de Julho foram dizimadas milhares de árvores, na maioria recém-plantadas por crianças de todo o País. O texto seguinte é um fragmento adaptado de um trabalho literário da minha autoria que reporta episódios verídicos fundados na imprensa da época.



Quando se sabe que os inimigos das árvores planeiam um morticínio, ninguém quer acreditar. É certo que alguns jornais começam a bravatear, numa linguagem medonha, contra os promotores de iniciativas tão pacíficas como a Festa da Árvore e a recém-constituída Associação Protectora da Árvore. Até um poeta de renome – António Correia de Oliveira – ousa lançar um livro com o provocador título de A Alma das Árvores. É de mais. Um dos periódicos conservadores consigna um «veemente protesto contra o abuso que se está fazendo da liberdade de consciência, forçando milhares e milhares de crianças a enfileirarem numa festa mais do que pagã.»
Contrapõe um órgão progressista:


«As árvores plantadas pelas crianças das escolas foram arrancadas e lançadas a terra pelos que teimam em ver na Festa da Árvore um culto pagão e não um culto de civismo. Este facto, como é natural, indignou profundamente quantos, não andando obcecados por idolatrias dogmáticas, sentem a utilidade, a benéfica influência na educação infantil e até no próprio espírito do povo, da realização de festas como a da árvore. Pode enfim esse bando escuro do retrocesso manobrar à vontade, mandando arrancar, cortar, lançar por terra as amigas e benfazejas árvores que os batalhões infantis alegre e festivamente plantaram aos olhos de uma multidão comovida e contente, que nem por isso a festa querida deixará de realizar-se, em todo o País, numa apoteose de luz, de amor e de verdade.»

Neste ano de 1914, a Festa da Árvore inclui uma novidade interessante: um hino. No início e no fim de cada uma das celebrações, as crianças de todos os pontos do País entoam o novo hino, o Hino da Árvore. Os autores, um músico português (Aboim Foyos) e um poeta brasileiro (Olavo Bilac) concitam de imediato a ira da facção oponente.
Apesar disso, os programas festivos continuam a decorrer com acções de sensibilização nas escolas, concursos juvenis para a inventariação dos exemplares históricos em cada concelho, oferta de vasos com plantas, visitas de estudo a parques, jardins e, sobretudo, plantação de árvores por jovens. Procura-se que cada um plante, pelo menos, uma árvore. Em Lisboa, um dos pólos das iniciativas é o Jardim Botânico da Sétima Colina, onde as plantações se revestem de um carácter simbólico, pois as pequenas árvores serão depois transplantadas.

Ocorrem, entretanto, num fim de tarde, terríveis acontecimentos. No momento em que um dos membros da Associação Protectora da Árvore fala sobre algumas espécies arbóreas em risco de desaparecimento, é interrompido por uma turba danada que força a entrada no Jardim Botânico e investe aos gritos de «abaixo os livres-pensadores, morram os hereges! Morra a República! Morra, morra!» Sem que se perceba logo o motivo da desordem, os intrusos precipitam-se para a área onde haviam sido plantadas as frágeis árvores. Crianças e adultos assistem com olhos de medo à sanha dos espezinhadores. Os amigos das árvores ripostam com energia, porém são neutralizados em pouco tempo perante as longas navalhas e varapaus manipulados pelos brutos. Os corações das crianças estremecem de cada vez que uma das árvores é espezinhada. Todas, transidas, choram.
Os salteadores descem a encosta que dá acesso ao arboreto. Por onde passam arrasam os seres vegetais cuja debilidade, pela tenra idade ou natural condição humilde, não permite opor resistência. Em escassos minutos devastam largas dezenas de plantas. O jardim pasmado deixa-se esventrar em clareiras de raiva. «Morra a República! Morra, morra!» Depois, retrocedendo, parecem saciados, começam a abandonar o recinto, urrando avisos aterradores: «Voltaremos! Voltaremos!»
O bando maléfico retira-se de vez, deixando o Jardim Botânico transformado num caos de maldade.

O escritor João de Araújo Correia, testemunha dos acontecimentos, relembra-os na obra "Pó Levantado":
«Essa Festa, criada em horas estelares, foi vítima de sonhos tenebrosos. Matou-a quem imaginou que Deus Nosso Senhor, depois de criar a árvore, se arrependeu a ponto de pedir aos crentes que lha excomungassem bem excomungada. Chegou a dizer-se, no auge desse delírio, que boas almas de santos, amigos do arvoredo, tinham sido escorraçadas do céu para o inferno.»







Pedro Foyos

Jornalista

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