Embora, nos últimos anos, tenhamos andado mais afastados, recordo-me que o António C., o Major, nos tempos em que nos víamos amiúde, me telefonava, muitas vezes, às quatro, cinco da manhã para partilhar uma interpretação da Krassimira Stoyanova, a sua última descoberta, ou discutir o mais recente director’s cut do Kusturica, a que se referia com o título original de Dom za vesanje, para mim completamente desconhecido, descoberto numa qualquer ida a Londres, por que nessa altura os downloads, a que se dedicou mais tarde, ainda não eram prática usual.
Amiúde, algum excesso verbal, o Major era um homem de excessos, tornava as suas ‘palestras’ algo divagatórias o que, somado ao facto de muitas das vezes ser acordado no meio de um sono profundo ou em plena comemoração romântica, durante e após o meu casamento com a Marta, a minha ex-mulher, para os mais distraídos, fez com que eu o começasse a atender com monossílabos.
O meu amigo, que precisa sempre de ter uma plateia atenta, mesmo que com apenas um ouvinte, começou a fazer agulha para outros lados e deixou de me telefonar.
Dizia-se, na altura, que tinha iniciado um relacionamento amoroso com uma aristocrata russa ou algo assim, embora nunca ninguém tivesse conhecido a enigmática criatura.
Os galgos faziam parte da lenda. Uns aventavam que a Duquesa, Marquesa, ou o lá que fosse tinha-o abandonado, mas deixara os galgos com ele, outros que o objecto dos seus amores morrera tuberculosa e que a ligação aos cães era uma forma de manter viva a imagem da desaparecida.
Mas a verdade é que, a partir daí, o Major recolhera-se numa vida de quase eremita, de onde saía apenas para as suas pesquisas literárias, arqueológicas ou palestras, convidado por uma qualquer universidade estrangeira.
Por fim, até esses convites, começou a declinar, passando os dias ligado ao mundo através da internet, respondendo aos seus inúmeros pupilos que lhe dedicavam teses de mestrado ou trabalhos universitários.
Tudo isto para dizer que não fiquei muito admirado pelo tardio do seu telefonema, nem pela maneira algo enrolada como o mesmo começou.
O pior foi a continuação.
“Oh man, os gajús querem-nos comer vivos, os son#$%bitch%&…”
Tentei pôr água na fervura.
“ Calma, Major. Quem são essas pessoas? E o que é que estão a tramar?”
Um silêncio prolongado foi a resposta.
Insisti na pergunta.
“O que se passa António? Diz qualquer coisa…”
Pareceu-me que o meu amigo estava a sussurrar, o que nele não era muito habitual.
“Wait pah, estou a ouvir uma p#$%a qualquer…”
E, logo de seguida”…eh, man, que m#$%a é essa? What fucking…?!???”
A ligação foi interrompida, subitamente.
Um silêncio pesado, encheu-me a sala de maus presságios.
Vários cenários, mais ou menos absurdos, cruzaram-me a cabeça.
Teria sido um assalto? Algum amigo noctívago, como o anfitrião, que batera à porta? O cão que acordara e despertara o mau génio do dono? Um qualquer old movie na televisão que lhe chamara a atenção?
Ainda tentei telefonar-lhe mas o telefone dava sinal de interrompido, possivelmente colocado fora do descanso.
Resolvi ir tomar um chuveiro bem quente antes de me deitar.
O dia fora bem comprido e repleto de emoções fortes.
E, amanhã, cedo, tenho que ir até às traduções, concluir o trabalho do Robert Wilson que já está atrasado.
Não posso levar muito a sério esta nova vida de Indiana Jones das Avenidas…
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010
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Pah, quem essa femme Krassimira, será prima desta senhora aqui , cujo franciú era quase tão culto quanto impenetrável ?
ResponderExcluirE não me digas nada àcerca de galgos, o que me sobra 'tá com 11 aninhos e trocos, e o facto de ser duas vezes campeão de PT (chama-se "best in show"...) não o livra de estar a morrer e eu a correr aqui para o hospital veterinário com ele dia-sim, dia-não...
:-(
Não James, é esta
ResponderExcluirhttp://www.krassimira-stoyanova.com/
Uau !
ResponderExcluirmuito mais bonita que a Kristeva...
:-)
Essa de Indiana Jones das Avenidas matou-me...
ResponderExcluir;-)
Numa nota marginal:
Faço notar que aqui, junto com ela, Otello, Verdi também há o José Cura ...
Não conheço é nem o maestro nem a orquestra.
Uma bela alegoria ao ambiente podre das altas personalidades.
ResponderExcluirO Major esquece-se de fechar a porta de casa, e depois dá nisto...
ResponderExcluirConheço esse desgraciado e ele disse-me, no dia em que tiver que fechar a porta de casa, muda-se...
ResponderExcluir:-)