Era para mim impensável deixar passar em claro a tragédia da Madeira.
As vidas humanas não têm preço, diz-se, e na verdade não é de preço que se fala: todas as vidas que desaparecem significam perdas incalculáveis, dramas indizíveis, famílias destroçadas.
Era por isso impensável não discorrer aqui sobre este drama, de que apenas nos apercebemos dos contornos imediatos.
Os que ficam terão de enfrentar a destruição, o vazio, a alteração súbita e violenta dos seus ambientes de vida, mesmo se conseguiram passar fisicamente incólumes por esta provação. Sente-se, subjacente aos relatos jornalísticos, a necessidade quase inconsciente de encontrar um responsável, um bode expiatório para tanta desgraça.
Parece ser essa a prática normal nos tempos que vão correndo, em substituição de uma mais coerente e consistente análise dos factores em jogo.
Há, em primeiro lugar, que aceitar desde já que a queda de água foi excepcional.
Poderemos procurar nas alterações atmosféricas causadas pelo aquecimento global uma razão para isso, mas a verdade é que a ciência ainda não conseguiu compreender tudo o que se passa no Universo (e ainda bem!).
Continua a haver lugar ao inexplicado, que por enquanto se mantém como inexplicável.
E aqui abre-se espaço para respostas mais ou menos esotéricas, mais ou menos divinatórias (no que a palavra tem de divino e de adivinhação), mas não é por aí que valerá a pena ir.
O que sabemos é que estes fenómenos excepcionais ocorrem em ciclos bastante longos, mas ocorrem. Há até uma expressão consagrada que é a “cheia dos cem anos”.
Isso, sabemo-lo de ciência vivida! Também sabemos que já se começam a fazer sentir alterações climáticas que serão fruto da poluição global e de outros factores cuja origem tem sido atribuída à actividade humana desregrada e excessiva.
Tem-se dito ainda que as alterações não chegarão de rompante (assim como o comboio que chega ao fim da linha), mas surgirão através de agravamentos sucessivos das condições actuais. Traduzindo tudo isto, e a atribuir o que agora se passou à alteração global das condições climatéricas, será de prever que situações semelhantes se venham a repetir num futuro menos longínquo que o que estávamos habituados.
O “ciclo dos cem anos” para cheias e fenómenos semelhantes, parece estar a encurtar o seu ciclo. Em consequência, surgem outros factores: se o risco de uma cheia de 100 anos era uma coisa que poderia até ser aceite, o encurtamento deixa de o ser.
Pretendo com isto dizer que, a verificarem-se as condições tradicionais, poderia ser tentador voltar a construir sobre o “leito de cheia dos cem anos”, pois só daqui a cem anos poderiam ocorrer condições semelhantes, e entretanto o edifício teria cumprido o seu ciclo de vida.
A questão é que com o previsível encurtamento dos ciclos, com o agravar das condições, essas cheias podem vir a acontecer com muito mais frequência e em plena vida dos edifícios.
Do ponto de vista das povoações por onde passam as ribeiras e levadas, a questão é ainda pior: entravar a natural fluidez dos leitos dos rios e das suas margens alagáveis provoca o transborde das águas.
Uma vez saídas dos seus leitos, as águas tomam ímpetos imprevistos e causam destruições tão grandes quanto desnecessárias.
Haverá portanto que reanalisar todos os pressupostos do planeamento e do desenvolvimento dos centros urbanos, de modo a precaver pessoas e bens da fúria das águas que saltam dos seus leitos sem aviso prévio ou complacência, causando dor, destruição e morte.
Se esses não foram os pressupostos no passado, que o sejam no futuro.
Poderá ninguém será culpado agora, mas passará a sê-lo se não aprender com o sucedido. Gostaria que o trágico exemplo da Madeira fosse tido em conta também no Continente.
O que ocorreu lá pode facilmente ocorrer cá também. Os pressupostos do desenvolvimento urbano são os mesmos, e o desrespeito consentido é exactamente igual: somos portugueses uns e outros (mesmo ao arrepio do que alguns dizem).
Do ponto de vista dos poderes públicos (em especial das câmaras municipais), haverá que ser mais exigente na definição dos planos directores e mais rigoroso no seu cumprimento, nomeadamente através da cuidada análise dos pedidos de construção.
E deve-se justificar cada decisão positiva ou negativa, porque elas não podem nem devem ser aleatórias nem ficar-se nas justificações ”que só os técnicos compreendem”.
É que há locais aparentemente fantásticos onde tem de ser proibido construir, por exemplo, porque são leitos de cheias de 100 anos, ou porque são bacias de infiltração que não podem ser impermeabilizadas, ou por mil outras razões nem sempre são fáceis de perceber, é certo, mas que têm de ser explicadas.
A verdade é que a pressão pública para “a asneira” é grande e muitas vezes, não só os grandes mas também os pequenos poderes e as pequenas corrupções, deitam a perder anos de trabalho e de controlo do território de que tanto precisamos e de que tanto dependemos.
“O meu caso” é sempre excepcional (pelo menos para quem o apresenta) mas muitas excepções tornam-se regra e assim tudo é deitado a perder.
Não pode haver excepções. O território tem de ser usado com parcimónia, tratado com cuidado e gasto com moderação porque, não o esqueçamos, o território é um recurso não renovável.
Caso contrário, todos perderemos, como agora ficou bem patente na Madeira.
Fernando Pinto
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
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Fernando...
ResponderExcluirO teu "Correr da pena" no seu melhor.
O conhecimento profissional a par de um belo pedaço de escrita.
"O território é um recurso não renovável", dizes tu, e bem.
Ontem, recebi um vídeo sobre a vida marinha (demasiado longo para inserir aqui) e ninguém pode imaginar o que a pesca de arrasto está a fazer ao fundo dos oceanos.
A natureza a ser violada por todos nós...
A minha contribuição:
ResponderExcluir1. Mau tempo, existe de vez em quando, e agora talvez mais.
2. Não é suposto construir-se em cima de linhas de água (embora eu entenda porque é que isso acontece... os pobres não têm outros lugares p'ra onde ir).
3. Não se impermeabiliza/alcatrôa tudo(na realidade já não se usa alcatrão, é betume betuminoso, feito a partir dum derivado do petróleo).
Tem que haver bacias de infiltração (terra) para a água que cai se infiltrar, alimentar os lençóis freáticos em vez de se escoar torrencialmente à superfície.
(no século passado tirei um curso de Engenharia Civil, opção Urbanismo, Instituto Superior Técnico, Lisboa).
E já agora...
ResponderExcluirQuando éramos menos, e quase só havia povoados ou se construia em terreno plano, ou se houvesse montanha, construia-se apenas na meia-encosta e nas curvas de nível que se podiam regularizar nela, com o alto da montanha a proteger-nos dos ventos fortes e os terrenos agrícolas em baixo.
Isto sabe-se há séculos.
Construir em declives, sobretudo se forem superiores a 10/15%, encarece brutalmente a construção e quanto a mim acrescenta riscos maiores de assentamentos diferenciais do solo (dá rachas nas casas, entre outras consequências...)
Peço desculpa se fui demasiado 'abstruso' aqui.
:-)
Todos,todos,todos sabemos tudo isto mas as asneiras continuam, aqui e por esse mundo fora.
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