quinta-feira, 27 de agosto de 2009

A justa invenção da toponímia municipal

1. RAUL RÊGO, O COMBATENTE

Vaidade, uma desenvergonhada vaidade, um absurdo contentamento têm os autores culturais ao julgar que após a visita da sinistra senhora da dentuça arreganhada vão ficar por aí os seus pobres nomes a enriquecê-los. Não fica nada. Descidos à cova, não fica nada. Alguns, pouquíssimos, serão recordados por décadas. Raramente, muito raramente, por séculos. O ciclo dos milénios está confinado aos antigos gregos e talvez, no futuro, a Leonardo da Vinci.
Os meus grandes autores de há quarenta anos são desconhecidos por completo das novas gerações. Tão grandes eram (são) que sofro ao aperceber-me de quão fugaz foi a imortalidade pétrea que lhes atribuí com não menos pétrea convicção.
São estes os tempos, bem sei, e tudo é finito, mas Portugal em particular é um país sem memória, dominado por uma matronaça chamada Futilidade que deverá ter um enorme calo nas costas pela fartura de pancadinhas de incentivo. Enquanto isso, são tratados à canelada os perigosos marginais do submundo das artes, das letras, das ciências: numa palavra, da Cultura.
Louvo por isso as comissões municipais que piedosamente acolhem os escorraçados, os esquecidos, os impertinentes, os mal-amados num pequenino paraíso da memória perene – a placa toponímica. Memória de pedra, rectangular, sucinta, franca.
Apetece parafrasear uma evocação que, noutro contexto, fez Manuel Halpern no último número do Jornal de Letras: Não desprezem as pessoas da Cultura, depois de mortas sempre servirão para dar nomes às ruas.

Nome de rua. Gostaria de acreditar em duas coisas: que, pelo menos um em cada cem moradores tivesse curiosidade em saber quem foi e o que fez a pessoa cujo nome tantas vezes pronuncia e que inevitavelmente terá de escrever com alguma frequência; e que, já agora, idêntica curiosidade o levasse a saber o nome da árvore que há tantos anos vive a poucos metros da sua porta.

Com alegria tenho sabido ultimamente que amigos magníficos com quem privei e trabalhei têm os seus nomes inscritos em placas toponímicas, sobrelevando desse modo o inditoso esquecimento a que estariam para sempre condenados. Seleccionei três. Uma trilogia que inauguro hoje com Raul Rêgo e prosseguirei com Romeu Correia e Augusto Cabrita.

Raul Rêgo foi meu director em três jornais: dois diários, e o outro tinha data esquiva de saída, com uma produção oficinal sujeita às contingências e riscos da clandestinidade (apesar disso, as respectivas tiragens suplantavam as de todos os jornais portugueses). Autor de vários livros de teor histórico e político, será lembrado, acima de tudo, creio, como o jornalista que mais intrepidamente combateu a Censura durante a Ditadura, de Salazar a Marcelo Caetano.
Um orgulho infantil e terno leva-me a ir somando as ruas do País que têm o nome do meu corajoso director. São já uma dezena, uma das quais, no caso da Amadora, ascendeu a avenida.
Orgulho infantil? Melhor diria: prosápia de menino, porque menino me vejo no centro de uma roda de gente, alvoroçado, cicerone de circunstância, um dedo espetado para a placa que tem o nome do meu director, ao mesmo tempo que me empertigo ao comunicar, grave:
– Foi um dos homens mais íntegros e corajosos que conheci! Que coragem! E que honra, a minha, ter estado ao seu lado em lutas inesquecíveis pela liberdade de expressão!
Neste passo, é possível, é mesmo muito possível, que levante um pouco a voz para ser bem ouvido:
– Antes e depois do 25 de Abril.
Logo se sobrepõe a figura franzina de Raul Rêgo, sempre um tudo-nada agitado, retardando, numa ténue gaguez, a articulação das palavras:
– Isso é passado. Agora temos de seguir em frente. Sobre a questão das ruas... das ruas com o meu nome... Dez?! Ena, quase dava para fazer um roteiro!




Pedro Foyos
Jornalista
Caricatura de Raul Rêgo da autoria de Henrique Tigo
A SEGUIR: ROMEU CORREIA, O PUGILISTA DAS MÃOS DE OIRO

2 comentários:

  1. Numa altura em que o mercantilismo se sobrepõe a tudo é bom – diria mesmo é reconfortante – ler homenagens como esta.
    Abraço

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  2. Parabéns pelo Texto, também fui amigo do Raul Rego e do Romeu Correia, alias tenho na minha colecção o manuscrito do "Casaco de Fogo" do Romeu, grande parte das capas dos livros do Romeu foram feitas pelo meu Pai H. Mourato.
    O meu livro preferido de sempre e infelizmente escolhecido de 90% dos Portugueses é o Tritão do Romeu.
    Parabéns mais uma vez pelo forte
    Um abraço fratermo
    Henrique Tigo

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