sábado, 6 de fevereiro de 2010

Mais um ano perdido - Miguel Sousa Tavares

Temos um bom ministro das Finanças e temos um mau Orçamento. É um Orçamento de nem carne nem peixe, mas a culpa não é de Teixeira dos Santos: é da conjuntura económica em que é feito e da cultura instalada de há muito nas finanças públicas. Por mais que todos os dias sejamos alertados para o descalabro da dívida pública acumulada e do défice orçamental, nas últimas semanas pudemos ouvir o Oeste a reclamar apoios financeiros por causa do vento, a Beira por causa da neve e até o Alentejo por causa da chuva. A Região Autónoma da Madeira reclama o direito a continuar a endividar-se, como sempre e como se nada fosse, e quer também receber 111 milhões de retroactivos que lhe não permitiram gastar no passado. A produtividade não cresce, as exportações estão afectadas pela crise nos mercados de destino, a competitividade da nossa economia é marginal e temos mais de meio milhão de desempregados. Mas as 'forças mortas' do país continuam a exigir o Estado-subsidiador, enquanto que as 'forças-vivas', também chamadas de 'iniciativa privada', continuam a exigir o Estado-contratador.

Ninguém vigia os gastos inexplicáveis do Estado, excepto o Tribunal de Contas, que não é respeitado; ninguém é responsabilizado por eles, ninguém se atreve a cortar de um lado para compensar os gastos excessivos no outro. Depois, restam as receitas fáceis: congelar salários, subir impostos aos que mais pagam, privatizar ao desbarato o que resta de património público. É difícil também sustentar o valor de exemplo ao não ceder os 111 milhões de euros a Jardim, quando só as Estradas de Portugal se dispuseram a pagar mais 500 milhões do que constava nos concursos públicos de adjudicação das novas auto-estradas - e ainda as obras não começaram! É difícil sustentar o aumento zero dos funcionários públicos (todavia, justificado), quando, com o aplauso ou o silêncio cúmplice de todos, a nova ministra da Educação acaba de garantir a paz no sector, cedendo tudo aos sindicatos: não só o fim da avaliação, como também um sistema de privilégio na ascensão na carreira que todos os outros sectores vão também, logicamente, passar a exigir para si.

Às vezes, de facto, é difícil acreditar na crise. Viram como o presidente da Caixa-Geral de Depósitos foi ao Parlamento explicar, descontraidamente, que o dinheiro injectado pelos contribuintes no BPN em nada afectou as contas da Caixa? (Para que se tenha uma ideia do que foi, basta lembrar que o primeiro-ministro do Haiti calculou em 7000 milhões de euros a quantia de que o país vai precisar para se reconstruir, nos próximos cinco anos. Quer dizer que, se não tivéssemos gasto 4,2 milhões no BPN, nós, sozinhos, poderíamos financiar 60% da reconstrução de um país de dez milhões de habitantes!). 5000 milhões irá custar o novo Aeroporto de Alcochete e, embora nos jurem que é uma parceria público-privada, sem custos à vista para o Estado, nós já conhecemos bem essa fábula e estamos fartos de saber que as parcerias público-privadas são uma fórmula do sistema 'goze agora e pague depois... mas mais caro'. Aliás, nem é verdade que o Estado não entre já com dinheiro para Alcochete: vai vender a ANA para pagar parte do custo, e a ANA é uma empresa pública rentável, que vai ser vendida barata e transformar-se num monopólio privado de exploração dos aeroportos nacionais. Aposto o que quiserem que, depois da privatização, viajar a partir dos nossos aeroportos vai ficar mais caro - como ficou mais cara a electricidade, o telefone fixo e tudo o que passa de monopólio público a monopólio privado (e ainda congeminam o supremo crime de privatizar a água!). Entretanto, enquanto não vende, o Estado vai tornando a ANA mais apetecível para quem lhe deitar a mão: nos últimos anos, a empresa investiu mil milhões de euros na modernização dos aeroportos do Porto, Lisboa e Faro e vai investir ainda mais 400 milhões na Portela - um aeroporto destinado a fechar daqui a sete anos (fora os 150 milhões que vai custar levar o metro até lá). Com a privatização da ANA, a TAP irá à falência, como foi a Olimpic Airways graças ao novo aeroporto de Atenas: mas só irá à falência se for pública; porque, se já tiver sido privatizada (depois de recuperada e pagos pelo Estado os novos aviões), de certeza que a ANA não cobrará as mesmas taxas que cobra à TAP pública. É o mercado, meus senhores...

Sim, é difícil acreditar que estamos em crise. Não sei se repararam mas, segundo o Orçamento, vamos gastar mais 60% com o reequipamento das Forças Armadas, e não sei se repararam mas, discretamente, comprámos mais duas fragatas, desta vez em segunda mão, à Holanda. E para que servem as fragatas? Para treinar com os submarinos - que comprámos exactamente para treinarem com as fragatas. Porque, para tudo o resto que nos interessa na defesa das nossas duzentas milhas, as fragatas e os submarinos têm a mesma utilidade que teria uma metralhadora nas mãos de um pescador de sargos à linha. Mas isto é material sensível, tal como os aviões da Força Aérea os helicópteros Lynx, ou os novos carros de assalto Pandur. É uma coisa estranha, mas depois de comprados, constata-se que ou não voam porque não há pilotos ou peças sobresselentes, ou se afogam quando era suposto serem anfíbios, ou afinal não servem para as missões para que foram congeminados e adquiridos. Metade dos Pandur que comprámos há dois anos estão no estaleiro, incapazes de andarem, por misteriosas deficiências de fabrico. E os outros, afinal, não servem para os teatros de operações da NATO em que estamos envolvidos - Kosovo, Afeganistão ou Iraque. Servem para simular assaltos nas praias da Comporta. E vivam os velhos Chaimite, Puma e Aviocar, que tão bem continuam a servir as nossas Forças Armadas!

Visto que 2010 é um ano perdido em termos de mudança estrutural e política nas finanças públicas, deixo uma sugestão: que o Parlamento nomeie uma comissão dos seus melhores especialistas, que durante o ano inteiro trabalhará com o Governo e com os peritos necessários, para definir uma nova filosofia e uma nova atitude. O mandato da comissão deveria ser claro e inequívoco: primeiro, identificar o modelo de desenvolvimento que se quer para o país - quais os sectores onde investir e apoiar, quais os principais problemas e perigos que o país enfrenta e pode vir a enfrentar e quais os meios financeiros necessários para investir nessa aéreas; depois, identificar minuciosamente tudo o que são gastos supérfluos e esbanjamentos do Estado; definir um sistema de controlo prévio e punição posterior das derrapagens de custos não justificáveis; e, feita a limpeza da gordura inútil, tomar opções firmes - queremos investir na educação, cortamos nas obras públicas; queremos apoiar as exportações, cortamos nas despesas militares; queremos apostar na salvaguarda do património natural, cortamos no apoio ao turismo; queremos melhor saúde pública, cortamos nas reformas; queremos desporto escolar, desistimos do mundial de futebol. E por aí fora, estas ou outras opções, mas partindo de uma premissa que deve ser martelada na cabeça de todos os portugueses até que o entendam: somos um país pobre, com escassos recursos e um Estado que não tem dinheiro para acorrer a tudo e substituir-se à iniciativa individual e empresarial.

Talvez assim, ao menos, não ficasse esta sensação de mais um ano perdido.

Miguel Sousa Tavares in Expresso

5 comentários:

  1. É óbviamente impossível, sem escrever um texto do mesmo tamanho comentar o que o Miguel S.T. escreve no jornal, e muitíssimo bem, sou insuspeito, não gosto dele por razões que não vêem ao caso, todavia aprecio a escrita que ele põe nos jornais (excepto em "A Bola", aí é puro fanatismo para o Fê Quê Pê...)



    Fica-se-me o seguinte, deve ser um efeito marginal da crise, haja algo que nos valha: as pessoas que escrevem seja o que fôr estão a utilizar mais o português que se não sabiam tinham obrigação de saber do que essa espécie de langue de bois, qualquer coisa como "português burocrático" ou por aí que devem ter aprendido para entrar nos Mentiristérios que são supostos servirem-nos mas reamente nos carregam desde tempos sem memória.


    Essa da ANA que eu não sabia, é uma pena...

    :-(

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  2. Tomates, faltam tomates !
    Afinal o problema de Portugal resulta de crise na agricultura ......:))

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  3. Ontem, ao ler a Crónica de Nicolau Santos, publicada aqui no "Galo", senti-me tentada a acreditar que éramos, realmente, "um país efectivamente fantástico, com muitas coisas boas e pessoas boas", como ele próprio afirma.
    Senti-me bem, quase vaidosa, por ser portuguesa.
    Valia a pena sorrir!

    Vinte e quatro horas depois, sou confrontada com este texto de MST, que já tinha lido há uma semana e do qual, inconscientemente, devo ter pretendido esquecer-me, onde todos os "podres" deste país são analisados à lupa.

    Como conjugar os outros sucessos, com estas falências?!
    Como tornar possível esta coexistência de anjos e vilões?!

    Um Orçamento, que não é nada, ditado pela conjuntura económica;
    um Tribunal de Contas, dirigido por um homem sério, não é respeitado;
    o Banco do Estado que gasta com o BPN o equivalente a 60% das necessidades para a reconstrição do Haiti;
    as parcerias publico-privadas, do gaste agore e pague depois...mais caro;
    os equipamentos das Forças Armadas "abatidos" à nascença.
    Apenas exemplos.
    Com números crús. Muito crús.

    Como fazer deslocar as "pessoas boas" para estas áreas tão sensíveis, para o bem-estar do nosso quotidiano?
    Como "sorrir"?!

    Temo que, a este ano perdido, nos esperem, ainda, mais alguns anos perdidos...

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  4. Adorava ter uma resposta p'ra isso e suficiente agricultura, contudo tenho ideia que já não.

    :-(



    P.S.

    Essa cena do BPN dá-me vontade de assassinar alguém, só não sei é quem...

    :-(

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  5. algumas coisas são fáceis de desmontar, basta pensar um bocadinho: os recursos envolvidos no BPN não desapareceram do mapa, como já foi abundantemente explicado e qualquer um de boa fé é capaz de entender; o aumento de preços de produtos ou serviços após as privatizações pode estar associado exactamente ao motivo que fundamenta a decisão de privatizar, qual seja a necessidade de investimentos que o Estado não é capaz ou não deve realizar, sendo óbvio que a remuneração desse esforço financeiro pode exigir o aumento dos preços - mas queremos ou não impedir o descalabro das empresas públicas e o excessivo endividamento do Estado, pelo contrário assegurando receitas que aliviam a dívida pública? ou queremos seguir para bingo com a nacionalização da economia? será coerente criticar a intervenção do Estado no BPN face à falência da gestão privada e em simultâneo criticar a desintervenção do Estado em empresas cuja gestão e propriedade não têm que ser públicas ? e andaram tantos e tão histriónicos a dizer mal da antiga Ministra da Educação que era demasiado rebitesa e agora afinal era boa e não se devia ter cedido ao cantiflas do comité central intersindical? ou é para vender jornal (e pagar as contas dos cronistas) que se pode dizer mal por dizer mal sem olhar a quê nem a quem? vá, o que custa pensar um bocadinho? e porque é que só sobre o FCP é que as patranhas do MST são facciosas? e no seu problema pessoal do tabaco? e no seu problema pessoal de verdadeiro totalista, especialista de todas as especialidades e entendido em todos os assuntos?

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