Cada ser humano integrará no cérebro toda a informação do Google acrescida das principais enciclopédias mundiais.
Mas esse dia está ainda um bocadinho longe. Ou talvez não.
Passou despercebida a morte recente de Kim Peek, o homem que no filme Rain Man inspirou a personagem principal, o inesquecível Raymon Babbit. Esta obra memorável de Barry Levinson, estreada em 1988, viria a ganhar quatro Óscares, incluindo o de melhor actor, Dustin Hoffman).
E, no entanto, poucos seres humanos terão concitado, durante a segunda parte do século XX, um tão grande interesse por parte da comunidade científica internacional. Kim Peek sofria desde o nascimento de uma singular enfermidade do espectro autista, deficiência associada à síndrome de Savant. Os "savants", como são denominados, não somam mais de dez por cento dos pacientes autistas, mas Kim Peek era especialíssimo, um "mega-savant" (apenas uma ou duas ocorrências por século). A sua capacidade de memorização era inacreditável, tanto que cientistas do mundo inteiro viajaram para os EUA porque descriam dos relatos difundidos pelas publicações médicas. De facto, Kim Peek retinha toda a informação que lia ou ouvia. Em contrapartida, deparava com dificuldades invencíveis para realizar os mais singelos actos quotidianos, como vestir-se ou calçar-se.
Era o pai, Fran Peek (ainda vivo e autor de um livro sobre o filho), quem tinha de o acompanhar para todo o lado, ajudando-o nas inúmeras e triviais tarefas diárias, ao longo de 58 anos de vida.
É longo, nesse livro e em revistas científicas, o repositório de "façanhas" de Kim Peek. Ingressa-se no género "a realidade ultrapassa a ficção". Tentemos uma síntese: com dois anos, Kim já conseguia ler e memorizava largos trechos dos livros; com 16 memorizou toda a obra de Shakespeare; em 2006, com 55 anos, Kim Peek sabia de cor 7 500 livros, entre os quais a Bíblia e volumosas enciclopédias. Depois disso foram enumerados 12 mil livros memorizados; todavia, por testemunho científico, o cômputo validado correspondeu apenas aos referidos 7 500.
A síndrome de Savant pode ser congénita ou adquirida após um dano cerebral. Característica recorrente nos "savants" é a de apresentarem, em termos volumétricos, grandes cabeças. Alguns cientistas observam cautelosamente nem sempre ser correcta a sinonímia grande cabeça = grande cérebro = grande inteligência, embora, no caso de Kim Peek, lhe tivesse sido reconhecida uma inteligência mediana ou mesmo acima da média.
Interessante coincidência, sem relação directa com Kim Peek: seis dias depois da sua morte, o diário Público preenchia mais de metade da primeira página com uma chamada para a entrevista de Ana Gerschenfeld, publicada no interior, com o paleontólogo francês Yves Coppens. Título: "Vamos tornar-nos cada vez mais cabeçudos". À pergunta "Como vamos evoluir?", Coppens responde:
«Vamos transformar-nos noutra coisa. Não em mil ou dois mil anos, mas mais para a frente: vejo um desenvolvimento do encéfalo, do cérebro, que vai tornar-se mais complexo, mais denso, mais rico em neurónios, com mais sinapses, mais volumoso também – o que quer dizer: partos mais problemáticos. Mas isso pode resolver-se naturalmente com uma redução do tempo de gestação, dando ao crânio da criança a possibilidade de crescer tranquilamente fora da barriga da mãe.»
Sorri. O escritor e cientista Carl Sagan é um dos meus dilectos. Morreu prematuramente, deixando uma obra magistral que gosto de revisitar.
Em Os Dragões do Éden Sagan apresenta ao leitor uma série de factos a partir dos quais desenvolve teorias cristalinas. Há cem mil anos, o cérebro humano já era um problema para as parturientes. Continua a sê-lo, cada vez mais, a ponto de violentar a própria biologia matricial. Somos únicos, irrepetíveis, acidentais. «O parto», nota Sagan, «só é doloroso para uma espécie de entre milhões existentes na Terra: os seres humanos. (...) consequência do contínuo aumento do volume craniano.»
Coppens, na entrevista ao Público, tem razão ao vaticinar um futuro de super-sapiens cabeçudos: «Em vez de termos 1 500 centímetros cúbicos de volume craniano, o que não é nada, vamos ter 5 000 centímetros cúbicos.»
Curiosa a expressão «não é nada». Este é o momento de chamarmos ao palco um dos maiores estudiosos mundiais do cérebro humano, o lendário biólogo evolucionista John Eccles (Prémio Nobel de Medicina, 1961) que confirma: os Neandertalienses, há cem mil anos, tinham cérebros praticamente tão grandes como os nossos.
Esta gravura, do próprio Eccles, mostra quatro crânios fósseis vistos de perfil, sendo que os dois superiores (a) e (b) são modernos e os inferiores (c) e (d) representam o Homem de Neandertal. As diferenças são mínimas, sendo manifesto, contudo, que os crânios anatomicamente modernos descrevem uma caixa cerebral mais alta e mais redonda. Significará isso que nos distinguiremos dos Neandertalienses tão-só por um punhado de centímetros cúbicos acrescidos ao cérebro? Claro que não. Porque a evolução agrega não só a volumetria e a forma mas também e sobretudo a complexidade. E a uma velocidade cada vez maior. Mais cérebro, mais complexidade, mais velocidade. O nosso ritmo evolutivo é incomparavelmente superior ao percurso temporal que o Homo habilis fez para chegar a sapiens. Yves Coppens exemplifica com bom humor: «Apenas um bocadinho de cérebro a mais e sobe-se logo para o nível acima. Acontece como nos impostos: basta ganhar mais uns cêntimos para passar para o escalão superior e pagar três vezes mais...». Ou seja, não teremos de esperar cem mil anos para obter o acréscimo de "cubicagem" que nos separa dos Neandertalienses.
Mas... que papel desempenha Kim Peek na grinalda destes acontecimentos fantásticos? Inspirar-me-ei no estilo de Coppens para o exemplo seguinte, imaginando que o cérebro de Kim seria um supercomputador construído por nós próprios. Fomos escrupulosos e sábios em todo o processo de fabrico, equipámo-lo com um incomensurável espaço de memória, deveras inusual, porém cometemos a inadvertência de fazer todo esse trabalho na parca estrutura de um computador doméstico. O resultado imediato, tão logo o pusemos a funcionar, foi quase crashar. Mas aguentou-se, espantosamente. E armazenou a diluviana informação que sobre ele jorrámos. Infelizmente não foi possível evitar alguns danos colaterais. A todo o momento lhe detectamos deficiências de operacionalidade no sistema motor. Quando empreendermos a construção de um novo computador tentaremos suprir esse erro de desproporção física, procedimento jamais exequível em relação ao cérebro de Kim Peek.
A Ciência vangloriou-se com esta prova real do potencial inimaginável do cérebro humano, mas Kim Peek saiu derrotado. Uma vida tropeçuda de olhares e gestos enviesados, passos instáveis, palavras entarameladas. De nada valerá sabermos de cor toda a informação contida no Google e conseguirmos papaguear página a página as principais enciclopédias mundiais se, acto contínuo, tivermos de pedir a alguém o favor de nos meter o sapato no pé.
Lamento agora ter de encerrar com más notícias. O género Homo não existirá na Terra daqui a centenas de milhares de anos. Muito antes de alcançar os 5 000 centímetros cúbicos de volume cerebral, como pretende Coppens, este planeta, exangue, devastado, ter-se-á rendido. Estaria preparado, vá lá, para continuar a acolher o Homo erectus, esse pacóvio que não vai além de mil e picos centímetros cúbicos cranianos. Mais do que isso… logo começa a escangalhar a Criação.
No entanto, é possível que tal não signifique a extinção dos super-sapiens-cabeçudos. No apogeu evolutivo dos dois ou três mil centímetros cúbicos de cachimónia cerebral estarão aptos a migrar para as estrelas. Terão muito por onde escolher: cem mil milhões de destinos na nossa galáxia, entre cem mil milhões de outras galáxias.
Mas ai, coitadas das estrelas.
Pedro Foyos
Jornalista
Cabeçudos, hein?
ResponderExcluirEntão já se começa a notar... e não é só "por fora".
Excelente matéria. Leio muito sobre o assunto, apesar de não ser da área de neurociência, psicopedagogia, etc. Alguns leitores e pesquisadores de savants de KIM como eu lamentamos a perda muito grande para o mundo, principlamente para os neurocientistas que estudavam o seu cérebro. Realmente bem lembrado somente a cada século registramos casos como o dele.
ResponderExcluirAbraços
Flávio Roberto Evangelista de Andrade