Dois queridos camaradas de ofício, o Fernando Correia e a Carla Baptista, tiveram há tempos a bela ideia de reunir num volume as memórias de jornalistas provindos da recuada época em que não existiam computadores. Nem gravadores portáteis. Nem sequer máquinas de escrever (já haviam, porém o advento nas redacções ocorreu apenas na transição da década de 50 para a de 60).
Mas já se comia com garfo e faca e, até, em algumas redacções mais progressistas começava a abrir-se a cancela às mulheres (encontram-se nesse livro vários testemunhos – incluindo o meu – acerca dessa experiência emocionante). Era o tempo em que Lisboa não possuía ainda semáforos e os polícias sinaleiros abriam o trânsito para dar passagem aos "carros dos jornais" (em troca recebiam o jornal do dia e, pelo Natal, uma garrafa de espumante!... E com tais despudorados e devassos procedimentos se cometia então o “tráfico de influências”, para não usar expressão menos polida) .
Retomando o fio: Espinhoso foi o caminho que levou enfim à concretização da antologia de entrevistas "Memórias Vivas do Jornalismo". A habitual via sacra de qualquer autor desprovido do mediatismo dos horários nobres (um outro jornalista, também editor – Francisco Vale – dá notícia num seu livro lançado há semanas: «(...) hoje há editoras especializadas em publicar figuras televisivas com audiências garantidas em "prime time", juntando-lhe um ou outro escritor "sério" descuidado da companhia.»
Não surpreende pois que "Memórias Vivas do Jornalismo" só apareça ao cabo de anos. Tantos que meia dezena de jornalistas representados na colectânea viajaram entretanto, em serviço de reportagem, para estrelas longínquas e decidiram nelas permanecer. Os fenómenos sobrevivos estarão expostos depois de amanhã, quinta-feira, dia 11, a partir das 18h30, na Livraria Barata (Av. de Roma, 11, Lisboa), a fim de fazerem prova de vida mediante autógrafos nos exemplares que os mais incrédulos desejarem testar. Haverá fanfarra, foguetório e falatório a cargo dos doutos “connaisseurs” José Rebelo e Miguel Gaspar.
E finalmente posso revelar o motivo porque nunca se efectivou neste espaço a etiqueta "Retalhos da Vida de um Jornalista", anunciada pelo João Viegas. Na realidade, as minhas "melhores" memórias profissionais estão registadas neste livro e, apesar de muito fragmentadas, sintetizadas e de os anos terem corrido sem que a obra viesse à luz do dia, eu devia aos autores-entrevistadores a fidelidade de as manter inéditas.
Segue-se a narrativa de um episódio em que me vi sugado por um torvelinho de tão grandes apuros que por pouco não cessou naquele momento a minha “promissora” carreira. O relato está longe de representar um dos melhores de entre as largas dezenas que preenchem a antologia "Memórias Vivas do Jornalismo". Creio, todavia, com assumida imodéstia, que poderá "dar o tom" de um livro que transcende o âmbito profissional e, não obstante ser realizado e protagonizado exclusivamente por jornalistas, procura cativar leitores indiferenciados, apreciadores de histórias de vida, contadas de forma saborosa, humorística, por vezes sarcástica.
Pedro Foyos em 1962, na redacção do diário "República"
(...)
Na rotina do funcionamento da redacção, íamos no princípio da manhã...
A partir das oito horas o principal noticiário nacional estava delineado e distribuído. Pelo início de 1963 começou a ser-me atribuído tudo quanto tinha que ver com crimes. Com uma antecipação de quatro décadas em relação à moda da "investigação forense", descobri em mim uma vocação detectivesca... O Laboratório de Polícia Científica iniciara a actividade a meio da década de 50, em condições naturalmente incipientes, mas em poucos anos alcançou o nível da melhor investigação europeia. Realizou-se uma visita de Imprensa na qual participei e o que assisti deixou-me entusiasmadíssimo.
Viu-se como um novo Repórter X da investigação criminal...
Mas longe do mero influxo sensacionalista do Repórter X. A cientificidade da investigação era o que mais me seduzia. Estudei o tema em profundidade, ia à livraria Férin encomendar livros de França porque em Portugal não havia nada. Foi um período da minha vida profissional que me encantou, fiz grandes reportagens policiais, cheguei a ser convidado pela Judiciária para ingressar na instituição!
Como aconteceu essa história?
Nas minhas reportagens avançava com cenários que poderiam conduzir à solução dos crimes, desenvolvia as hipóteses mais prováveis, afastava aquelas que decididamente, na minha opinião, não o eram, elaborava teses, tudo muito científico... Um dia tive de ir à PJ recolher o depoimento de um inspector-chefe, devidamente autorizado pela direcção para comentar um caso já encerrado com êxito e que eu acompanhara de perto, semanas a fio. No fim do encontro, comunicando-me que continuava a seguir as minhas reportagens com o maior interesse, fez à queima-roupa o convite. Que era apenas uma questão de falar com a direcção, o assunto resolver-se-ia em duas penadas. Outro inspector, Alfredo Allen Gomes (desempenhava ao tempo as funções de porta-voz para os órgãos de informação, era uma pessoa muito estimada pelos jornalistas e chegou a ser director da PJ logo após o 25 de Abril), quando me via lá nas reuniões com a Imprensa tratava-me por «nosso futuro colega». Mas antes disso tive grandes problemas com a Judiciária, um bico-de-obra, passei longas horas meio detido...
Passou de "meio detido" a potencial membro da Judiciária?
Um caso muito falado no final de 1963 foi o de um esqueleto humano, do sexo masculino, descoberto por uns rapazes que andavam na brincadeira a pular de rocha em rocha, atrás de um pássaro, nas falésias do Guinho. Um deles, para assustar os outros, escondeu-se numa das grutas e deu de caras, passe a expressão, com o esqueleto. Passados dias, a PJ arrumou a questão com a tese de suicídio, o que acontecia por vezes em relação a casos ocorridos há anos. A verdade é que os investigadores estavam excessivamente enredados em crimes intrincados da actualidade, o tempo não dava para tudo e factos antiquíssimos
estariam longe de merecer prioridade. Entretanto, logo no dia seguinte ao do achado iniciei uma investigação que se prolongou por uma semana. Falei com os rapazes, pesquisei a gruta, recolhi elementos valiosíssimos que tinham escapado aos agentes. E publiquei uma reportagem que contrariava completamente a versão da polícia. A "verdade dos factos" divulgada dias antes por intermédio dos órgãos de informação era por mim desmentida, com provas entregues nesse meio tempo à Polícia Científica. Indicava com objectividade ter ocorrido homicídio e não suicídio. Um caso tétrico, apurei depois, de maridos conluiados para "lavarem" as respectivas honras enodoadas contumazmente... Tive o cuidado de não mencionar a versão oficial, a Censura terá considerado que as informações provinham da própria Judiciária e a reportagem saiu sem um único corte. Bem, foi uma bomba! Nesse mesmo dia a Censura transmitiu aos jornais que o caso do esqueleto do Guincho «está morto, morto e enterrado, acabaram as notícias.» Fui chamado à Judiciária e fiquei mais ou menos detido. Foi assim uma prisão de: «... não pode sair, mas também não está preso, fica aqui.» Mantiveram-me sob um longuíssimo interrogatório, por mil vezes repeti as mesmas coisas. Estavam convencidos de que tinha forjado aquilo tudo, de que era um golpe sensacionalista. Passei de investigador a investigado. Fui levado à "cena do crime", foram reconstituídos todos os meus passos de pesquisa, com instantes terríveis dado que vacilei muito tempo sobre a localização da gruta.
Porquê?
Toda a paisagem de rochedos me parecia igual! Não havia fixado pontos de referência, um procedimento policial dos mais elementares, que tardiamente aprendi. A minha situação era complicada. Um malogro naquele minuto descredibilizar-me-ia, arruinaria para sempre uma carreira jornalística recém-iniciada e sem dúvida seria incriminado por, de certo modo, difamar publicamente uma instituição como a Polícia Judiciária.
Para começo de carreira, não estava mal...
Na verdade, uma encruzilhada dificílima, mas tinha a meu favor o número elevado de indícios de homicídio. Descrevia-os com rigor na reportagem.
Mais do que convicção, pesavam os índícios concretos. Era isso?
Sobretudo o facto de eu provar que o corpo havia sido transportado para a gruta por duas pessoas, uma das quais, na precipitação do acto, cometera a incúria de perder um objecto pessoal que não era relacionável com a vítima. Um detalhe importante, entre outros. E confiava na proficiência do Laboratório Científico da PJ, para onde havia sido encaminhado o material por mim colectado na areia, mas não excluía a hipótese de alguém, naqueles tempos e para salvar a face da corporação, poder escamotear os resultados. Para minha fortuna tudo foi rigoroso e isento, concluindo-se que a areia solidificada no esqueleto era geológica e temporalmente coincidente com as provas por mim recolhidas. Os demais indícios avançados – numerosos, fundamentados – confluíam também com verosimilhança para o cenário de um homicídio. A Judiciária acabou por reconhecer particularmente a natureza escrupulosa das minhas investigações. Meses depois, quando voltei para recolher o depoimento que referi, o inspector-chefe fez-me o tal convite. Mas o jornalismo já me havia capturado inelutavelmente.
(Continua numa livraria próxima do leitor...)
Nota do 'Galo': Este é o Post 50 do Pedro Foyos numa
colaboração periódica e, no meu entender, de grande originalidade
com alguns temas invulgares e sempre interessantes.
Aqui ficam os nossos Parabéns pelo 'Cinquentenário' !!!
Os teus textos são uma revelação constante, onde o humor se mistura com uma apreciação “cáustica” do meio envolvente!
ResponderExcluirA PJ pode ter perdido um investigador, mas o jornalismo ganhou um brilhante escritor.
Obrigado Pedro