O quadro começou a ganhar forma, na sua cabeça, muito antes de ensaiar o primeiro esboço.
Foi visualizando as linhas de força, os pontos de fuga.
Depois tentou passar as ideias para o seu bloco de croquis.
Primeiro a grafite, depois introduziu o colorido a pastel.
Rasgou muitos roughs até chegar a um que lhe agradou.
A seguir foi a definição do suporte.
Optou por uma tela de linho. Quadrada com 1,5m de lado.
Tinha chegado, por fim, a parte mais difícil.
A escolha da modelo.
Falou com outros colegas pintores.
Visitou ateliers e agências de modelos.
Esta era muito gorda, aquela muito magra.
Esta quase anémica, a outra muito escura.
As clavículas saídas, os olhos encovados, o cabelo ruivo,
os seios descaídos, os joelhos ossudos, os pés grandes,
a boca pouco voluptuosa, as ancas largas,
as nádegas descaídas, as órbitas arregaladas.
Tudo era motivo para a recusa.
A testa proeminente, as unhas lascadas,
as axilas peludas, o nariz saliente, o nariz pequeno,
o umbigo insignificante, o queixo muito másculo.
Esteve quase a desistir…
Até que um dia, quando subia a Rua da Atalaia, viu-a.
De altura mediana, esguia mas elegante, rosada,
rosto clássico, olhos castanhos, cabelo ondulado.
Meteu conversa, convidou-a para o trabalho.
Ofereceu-lhe um valor muito superior ao habitual.
Ela já o conhecia dos media.
Aceitou , desde que a mãe a pudesse acompanhar.
Um pouco contrafeito o artista acedeu.
E durante quase três meses, a modelo acompanhada
pelo seu chaperón visitou-lhe o estúdio todos os dias,
posando durante quatro intermináveis horas.
Depois de muitas emendas e correcções,
o pintor deu a sua obra por concluída.
E agora lá está o quadro. Na montra da Galeria.
Um quadrado verde cortado verticalmente por duas riscas.
Uma laranja. Outra amarela.
Ernesto E. Minguêi
sexta-feira, 27 de março de 2009
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Excelente sátira a, alguma, Arte Moderna.
ResponderExcluirMuito bom! Parabéns!
ResponderExcluirA importância de se chamar Ernesto...
Ai Ernesto, cresce água na boca e acabamos com duas linhas ?
ResponderExcluirEu sei que o quadro ficou bom e que até pode vir a ser adquirido pelo Jo Berardo...
Num estilo diferente de Hemingway, este nosso E. Minguêi dá-nos uma boa história sobre o percurso deste quadro: da cabeça do exigente pintor à montra da Galeria...esperando clientes exigentes, ou talvez não...
ResponderExcluirComo Conto com princípio, descrição e final inesperado este é, para mim, um dos melhores até à data. Vamos ver se continuamos a melhorar.
ResponderExcluirTenho que me esforçar mais para a próxima...
Gostei imenso, Ernesto!
ResponderExcluirRitmo em crescendo...sincopado até ao mistério e a nudez da verdade...( para uns, cada um tem a sua, para outros a montanha pariu um rato, para outros, ainda, a verdade está sempre tapada "pelo manto diáfano da fantasia").
Muito bom, MESMO!!!
Sarcasmo, ironia e crítica com grande economia de meios.
ResponderExcluirPode ter Minguado muita coisa, menos talento.
Também gostei bastante. O melhor até à data. Parabéns a todos!
ResponderExcluirUm micro-conto do tamanho da exigência do artista. Boa Ernesto. Parabéns
ResponderExcluirNão tenho qualquer dúvida, o melhor conto que o Galo publicou até à data.
ResponderExcluirA lembrar-me a peça Arte com o António Feio e amigos.