quarta-feira, 25 de março de 2009

A Promessa


Nasceu num lugarejo perdido, entre calhaus, oliveiras secas e uns rebanhos famélicos que, de cabeça baixa, tentavam raspar daqueles solos o que já há muito deixara de crescer.
Os pais, de mãos calosas e sobrolho cerrado, insistiam em trabalhar a terra, que já fora dos seus pais, e dos pais dos pais destes, para no final do dia colherem uma couve amarelada, umas parcas batatas, algumas cebolas.
A sopa aguada tinha que dar para as dez bocas da casa, os pais, a avó viúva, a tia solteirona e ele, mais os cinco irmãos, de idades variadas, mas a pouca distância uns dos outros.
O pão era caseiro, amassado e cozido pelas mulheres da casa e impregnava as pequenas divisões, onde rapazes e raparigas se amontoavam, com um aroma que facilitava os sonhos que o levavam para longe dali.
Foi o único a terminar a primária, porque a professora, ao verificar a inteligência viva do gaiato, insistira com os progenitores para que o deixassem lá mais uns anitos.
Os irmãos trabalhavam já nas obras, poucas, que havia na região, na recolha da resina, na apanha da azeitona, enquanto as raparigas, aguardando por um qualquer casamento que as livrasse daquela vida, iam fazendo trabalhos de costura para fora ou labutavam em pequenas fabriquetas de olaria, ou a fazer cestos e tapetes.
Enquanto estudava e para aceder aos pedidos da professora, ajudou nas missas de Domingo, por isso toda a gente achou natural que o pároco o tivesse encaminhado para o seminário que ficava na cidade, a mais de cem quilómetros de distância.
Passou a aparecer só nas férias grandes, cada vez mais estranho, distante em relação aos pais e irmãos que o olhavam temerosos.
Afinal a família sentia que o filho, sobrinho, neto , irmão, era quase o novo Senhor Padre
e isso colocava-o num plano superior, num patamar mais elevado.
Até que um dia, ele surgiu inesperadamente, quando todos à volta da malga da sopa, faziam as suas orações.
Que descobrira não ter vocação, que ia emigrar para longe, que queria voltar rico e tirá-los a todos daquela vida miserável.
Eles não entendiam, que vida? Mas não viviam todos assim?
A mãe chorou lágrimas secas nos sulcos das rugas, o pai de olhos brilhantes amassou o boné entre as mãos que lembravam toros.
No outro dia de madrugada, ele partiu por entre a neblina fria que molhava os ossos e a alma.
Prometeu que voltaria rico. Afastou-se pelo caminho tortuoso, sem olhar uma vez para trás. Para não se arrepender da decisão.
Algumas semanas depois receberam uma carta que levaram ao velho padre para que ele a lesse. Estava em Caracas numa empresa de construção e ao fim de semana trabalhava numa padaria.
Depois passaram anos sem uma palavra. A avó e o pai morreram com uma semana de intervalo. Uma irmã já há muito se finara tuberculosa e um irmão ao cair de um andaime da obra.
Finalmente chegou uma carta com fotografias várias. A casa que mandara construir com uma coisa que parecia um grande tanque mas a que ele chamava piscina. A rede de padarias que entretanto espalhara por várias cidades da Venezuela. A noiva sul americana com quem pretendia casar.
Mais uns anos sem notícias. Foi a vez da mãe e da tia, já velhinhas, fenecerem sem uma palavra. Depois, os dois irmãos mais novos, num acidente de moto regado a aguardente de poejo.
Quando o telegrama foi entregue “Chego para a semana” já só existia uma irmã, hospitalizada há meses e com o raciocínio perdido no mundo do faz de conta.

Quando ele chegou, com vários anéis de brilhantes nos dedos, a fumar um cubano e ao volante do carro importado, viu um funeral que percorria o lugarejo, ainda mais escuro e pobre, do que as imagens que permaneciam na sua memória.
Perguntou quem era. Era a irmã…

Maria Papoila

3 comentários:

  1. O primeiro Micro com toques de neorealismo.
    Muito bom, e moralista - o Dinheiro não traz a Felicidade.
    Mas que ajuda, ajuda...

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  2. Finalmente um micro com um toque de ruralidade.
    Embora com um final previsível, gostei.

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  3. Muito bom, mesmo.Parece que estava numa daquelas aldeias da Beira interior
    ou do Nordeste Transmontano.
    De onde é a Maria Papoila?
    Parabéns por ter assumido as suas raízes...
    Fico à espera de mais
    "Viagens pela minha Terra".

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