Durante anos tinham-se
encontrado em pensões
escusas, no horário
do almoço ou,
em ritmo de urgência,
antes de cada um regressar às
respectivas casas ao fim do dia.
Amavam-se sôfregos como
se fosse a última vez, que
nunca sabiam ser
aquela ou não.
Com uma violência imbuída de ternura, não se percebendo
os limites da paixão que dava, muitas vezes, lugar a uma revolta mútua.
Esticavam os minutos arrastando o momento da despedida,
cada tarde um pouco mais,
até terem que se separar, despedir até ao outro dia.
Depois era a correria dele para o metro, com o coração
sobressaltado, as mãos húmidas, o cheiro dela ainda
entranhado na pele, a chegada a casa, o beijo morno da mulher,
o vislumbre de uma dúvida, real ou inventada,
no olhar desinteressado, o jantar em silêncio, a televisão rotineira,
o adormecer com imagens dessa tarde, do amanhã ao almoço,
a agitarem-lhe o sono.
E no dia seguinte o deslumbre e a agonia.
A paixão avassaladora e adolescente, embora fora de época,
a má consciência, o remorso e a vontade de fugir,
de enfrentar todos, de pôr cobro à vida, uma amálgama
de sensações, de contrastes que o levavam
dos picos luminosos mais elevados até cavernas
escuras e malcheirosas.
Com ela passava-se o mesmo, após a separação metia-se
no trânsito durante quase uma hora, guiando de modo automático
até chegar à casa que dividia com o pai, já idoso.
Preparar o jantar, pôr a mesa, trocar algumas breves palavras
com o ancião, de um modo alheado até à hora de adormecer
a contar as horas, os minutos, que a separavam
do próximo encontro, que muitas vezes jurava para si mesma
ser o último.
Mas no dia seguinte ansiava pelo telefonema quase em código,
com a hora, a confirmação do local habitual.
E depois era sempre como se da primeira vez se tratasse.
Um temor, um tremor nas pernas, uma angústia,
e após o primeiro beijo, o primeiro suspiro,
o abrir do dique das emoções, cada dia mais forte,
com um forte e inesgotável caudal de promessas,
verdadeiras naquele momento, certezas que se esboroavam
no momento próximo da nova separação.
E o prazer que ambos julgavam, de cada vez, inultrapassável,
a surpreendê-los uma e outra vez. Mais, cada vez mais…
Até que um dia, tudo o que ambos sonhavam em silêncio,
tudo o que pediam nas suas rezas pessoais,
aconteceu da maneira mais simples e inesperada.
O pai dela finou-se, em silêncio e sem dor, enquanto dormitava,
num sábado à tarde.
E a mulher dele, dias depois, foi viver com um ex-namorado
de infância, viúvo de fresco, que reencontrara
num congresso de vendas.
Ficaram sem saber bem o que fazer…
Nesse dia ao almoço acharam que, com duas casas,
seria um desperdício irem até à pensão.
Dormiram em casa dela, mas ele entreteve-se a ver as fotografias
que se espalhavam por cima dos móveis de estilo.
Fez-lhe cenas de ciúmes quando a viu, numa delas,
abraçada a um rapagão, primo distante, segundo ela.
Estranhou a cama, que rangia a cada movimento.
Acordou mal disposto e resmungão.
De manhã não pôde comer os cereais habituais.
Foram no carro dela em silêncio, não sem que surgissem
umas críticas à condução desatenta.
Nesse dia resolveram pernoitar no apartamento dele,
mas os problemas sucederam-se.
Ela não se ajeitou com o fogão e as costeletas de porco
saíram esturricadas.
Perante a sua insistência para ver o último episódio da novela
ele, amuado, desistiu de saborear o derby.
O pior estava para vir quando ela se recusou a dormir na cama
da “outra” e ficaram os dois no sofá desmontável da sala.
No outro dia mal se podiam olhar um ao outro.
Quinze dias depois já não se falavam e vivia cada um em sua casa.
Sózinhos…
Joana Lisboa
domingo, 22 de março de 2009
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O "Pecado" pode ser um grande afrodisíaco.
ResponderExcluirGostei da história.
Esta história ilustra muito bem o velho ditado: "Cuidado com o que desejas porque podes consegui-lo"
ResponderExcluirOs dois comentadores anteriores já disseram o essencial.
ResponderExcluirResta-me falar da construção de toda a narrativa, das ambiências - pensão, casamento rotineiro, filha com o pai idoso,etc.
E o final, mesmo que não totalmente inesperado é também muito bem conseguido.Se tivesse que classificar daria um 4.
Na vida de todos nós nada acontece de original.E um conto apesar de o ser, mais não é do que a máscara do que um dia aconteceu connosco ou com alguém que conhecemos.
ResponderExcluirSerá o caso ????????
uau!!!, ou wow!!!, consoante preferirem. gostava de conseguir escrever assim, parabéns Joana.
ResponderExcluirA Quimera tem razão e o Adriano também!
ResponderExcluirEles lá sabem do que falam...
"Uma História dos Nossos Tempos", contada com muita imaginação, e em muito bom Português.
Não é, Joana?!
Uma história que todos conhecemos mas que nem por isso se deixa de se ler com interesse, porque bem escrita. O ritmo da descrição da vida clandestina não se perde na descrição da tão aspirada "vida a dois"!
ResponderExcluirFelizmente que nem sempre a passagem do clandestino para o "às claras"mata os sentimentos envolvidos e afasta as pessoas que vivem essa situação.Falo com conhecimento de causa o que me deixa ainda mais à vontade para dar os parabéns à Joana por esta magnífica e sentida prosa.
ResponderExcluirEscondidinho e com perigo é sempre melhor, digo eu que sei do que falo.
ResponderExcluirSe calhar quase todos nós já tivemos experiências semelhantes e o que nos impede de dar o passo final é o pensarmos que a continuação poderá ser como o final deste sensacional micro conto.Parabéns à Joana.
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