segunda-feira, 16 de março de 2009

O Isqueiro


Naquela noite havia moda no Cais do Sodré.
Desde que os bares da zona
tinham conseguido a proeza
de atrair um público
que tanto podia ser intelectual, como “fashion”
ou mesmo alternativo e que convivia de forma natural
com a prostituição que algumas
casas mantinham, tudo podia acontecer por ali.
Salomé e Clara, frequentadoras assíduas
das noites de reggae do Jamaica,
foram pela primeira vez sozinhas naquela noite
assistir a um desfile de moda no Tokio.
Amigas “unha com carne”, à beira dos trinta,
cheias de entusiasmo pela vida, sobretudo pela vida de noite,
vestiram-se para arrasar.
Salomé era alta, elegante, morena de olhos verdes.
Apesar disso não era o género de mulher
que fizesse os homens virarem-se na rua.
Mas se calhava conversarem com ela, era fatal.
A sedução e o mistério que respirava exerciam uma atracção
que nunca se sabia onde levava.
Naquela época estava disponível.
Clara era uma morena linda de olhos pretos enormes.
Era, geralmente, considerada pelos homens como uma compincha,
embora à sua maneira fosse uma sedutora.
Via em Salomé, a quem tudo podia acontecer,
o repositório das suas fantasias.
Tinha uma relação estável há anos.
Entraram no bar com um ar confiante e foram até ao balcão
buscar uma bebida.
Cruzaram-se com amigos, conhecidos e desconhecidos
e procuraram um ponto estratégico para, confortavelmente,
verem o desfile.
Num ápice não cabia nem mais uma pessoa naquele espaço.
Mal o espectáculo começou, o olhar de Salomé cruzou-se
com o de um homem que estava do outro lado da sala.
Também ele sedutor.
Instalou-se um jogo de olhares
que se prolongou até o desfile terminar.
Na altura em que as pessoas tinham recomeçado a circular,
Salomé pegou num cigarro e procurou
durante alguns segundos um isqueiro,
que teimava em não aparecer, no fundo da carteira.
Quando finalmente levantou a cabeça e acendeu o cigarro,
o Sedutor estava à sua frente. Estremeceu.
Assim que ele lhe perguntou se era a primeira vez que ali ia,
ficou tão desiludida com a abordagem
que optou por não alimentar a conversa.
Desencontraram-se.
Já na rua, quando as duas amigas se preparavam
para apanhar um táxi,
Clara contou-lhe o que tinha observado.
Foi assim que Salomé ficou a saber que enquanto procurava
o isqueiro, o Sedutor atravessou a sala, com um isqueiro na mão
pronto para lhe acender o cigarro.
Quando chegou junto dela já Salomé acendia o cigarro.
Rapidamente meteu o isqueiro no bolso, transformando
um gesto inesquecível numa pergunta banal.
As duas amigas riram-se muito pela noite fora, mas Salomé
ficou com pena de ter encontrado o isqueiro.
Pinta

14 comentários:

  1. Alguém me apresenta a Salomé de preferência ou a Clara, como segunda hipótese? E quando é que vai ser a próxima saída?
    Agora a sério, uma das melhores descrições de ambiente nestes surpreendentes microContos,em que basta fechar os olhos para ver a fauna colorida da capital nas suas danças de sedução.Espero que a Pinta não fique por aqui, mas cuidado com o Galo...

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  2. Ganda pinta, Pinta !
    Recordei o Cais do Sodré onde havia faísca da grossa e não era preciso um isqueiro...
    Ou seja, já não há Caiss de Sodré como antigamente !
    Ai que saudades,
    o Sol a bater na espada,
    a espada nas costas do cidadão
    e estas que nem pão nas pedrinhas da calçada !

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  3. Vou ter que enviar um submarino a essa tal de Salomé para cair na gandaia com ela...
    Vem quente que eu estou fervendo, nem preciso de isqueiro.

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  4. Embora como se compreende com facilidade este não seja o meu ambiente, que é muito mais rural, não seja a minha maneira de estar na vida, que é muito menos fútil e até não retrate as minhas orientações sexuais,tenho que reconhecer que está bem escrito, fluente e cativante.
    Só espero que não tenha sido escrito pela Lady...

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  5. Cais do Sodré,Jamaica, Tokio...são estas coisas que me mostram que estou a envelhecer.
    Onde é que eu tenho o isqueiro?
    Também não preciso, já não fumo...

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  6. Quando estou por estes lados,eu sou mais Bairro Alto, mas acho que num Microconto conseguir transmitir toda uma atmosfera, caracterizar os personagens e ainda contar uma história, é obra. Parabéns Pinta.

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  7. Cheia de PINTArola, PINTAda de fresco,não se aPINTA que é feio...o PINTO do meu vizinho é sempre maior có meu!

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  8. NÃO CONHECIA ESTE BLOG E FIQUEI ENCANTADA COM A VARIEDADE E QUALIDADE DOS POSTS E A GRAÇA DE ALGUNS COMENTÁRIOS.JÁ O COLOQUEI NOS MEUS FAVORITOS E SEMPRE QUE TIVER UMA OPORTUNIDADE IREI VOLTAR.
    ESTE CONTO É MUITO INTERESSANTE E RELATA UMA SITUAÇÃO QUE EU VIVI,QUASE IGUAL, NO MESMO LOCAL...

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  9. Donde será que eu conheço esta Salomé e esta Clara???!!!

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  10. Mas porque é que a Lady tem que conhecer toda a gente, saber tudo e citar todos?

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  11. Meninas, sejam amigas,vá lá...

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  12. "Ao contrário da personagem trágica, a personagem cómica não tem “história”. Nasceu não se sabe onde, tem as mais diversas profissões (Charlot é indiferentemente bombeiro, polícia, boxeur, soldado... como Arlequim que é criado mas pode estar na guerra), ama a mesma mulher ou muda de amor de peça para peça mas o seu amor não tem “história”. A personagem cómica identifica-se a si própria – não tem princípio nem fim. Terá traços de identificação – a fome de Arlequim, o andar de Chaplin, a máscara de Pamplinas. Mas – como o detective do romance policial – ela é sobretudo uma estrutura autónoma. Existe porque sim. (E é bem feito!)"

    lembrei-me deste excerto dos "textos de apoio" de um espectáculo do Teatro da Cornucópia, que ainda hoje estaria em cena e actual:

    E NÃO SE PODE EXTERMINÁ-LO?

    Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 24/03/79

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  13. Tarnhelm...
    Não estamos no Valhalla... e andam por aqui uns espíritos do reino dos Nibelungos!

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  14. J. num mundinho onde não houvesse mulheres, onde é que tu te escondias ? ? :-P

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