segunda-feira, 9 de março de 2009

A Viagem de Penélope

Um Diário Gráfico é assim
uma espécie de máquina fotográfica
com o defeito de não captar
exactamente aquilo que lá está
mas aquilo que estamos a ver.
"...No tempo em que o ensino superior não era bolonhês
como o spaghetti, houve por vezes, tempo e espaço
para se reinventar aulas, neste caso, aulas de Desenho.
Sabemos por experiência que uma rotina semântica,
repetida à razão de um semestre sobre outro
pode rapidamente tornar-se enfadonha.
E unidades curriculares semestrais podem, por isso,
tornar-se desprovidas de encanto e apelo.

E assim, certa vez para quebrar a rotina, em vez de salas de aula, habitámos por 12 horas in-a-row o mítico comboio Sud Express, rumo a Bilbao, com o propósito de elaborar um Diário Gráfico de viagem.
Um Diário Gráfico é assim uma espécie de máquina fotográfica com o defeito de não captar exactamente aquilo que lá está mas aquilo que estamos a ver – produto da nossa presença no espaço, da nossa visão, da experiência e vá lá, se quiserem, na nossa aptidão.
Esta última – vulgarmente designada de “jeito” – está, a meu ver, em definitiva concordância com a vontade do seu executante, pelo que aquele que persiste obtém e aquele que desiste sucumbe perante a facilidade de atribuir a um dom divino a capacidade de desenhar.
E isso é muito mais fácil fazer.


Só por si, as viagens de ida e volta neste regional trans-pirinéus, davam para encher os tags de um blog por duas semanas.
Em 24 horas assisti, como diz o povo, “com estes olhos que a terra há-de comer”, a:

…um casal de estrangeiros que viajava (por engano, acrescente-se) no nosso compartimento, foi algemado e obrigado a descer na fronteira de Vilar Formoso, mais as suas três enormes malas que viajavam sobre as nossas ingénuas cabeças – ainda hoje me arrepia pensar no seu insondado conteúdo;
…um pica-bilhetes espanhol que me chamava “chica” e “guapa” a toda a hora, não sem rolar os seus grossos dedos na minha desprevenida bochecha, perante o olhar incrédulo dos meus alunos que se apressavam a fazer uma espécie de cordão de segurança em meu redor;
… bandos de pequenos portugueses emigrantes – como os “pardais” da canção, se bem que estes todos maiores de idade – cujas bagagens se resumiam a imensas paletes de plástico de cerveja Sagres. Não deve existir em França, pensei…
Porém, antes da chegada ao destino já estavam todas deitadas abaixo, assim como os fiéis depositários do líquido dourado, com as típicas manifestações do tipo extroversão, particularmente evidentes quando tentei percorrer aquele exíguo corredor ao longo da carruagem – fugindo dos dedos grossos – pedindo licença a cada aglomerado de paletes e obtendo, em troca, além de pouco espaço, alguns aconchegos verbais que incluíam, quase sempre, menções a Nosso Senhor, elogios à minha mãezinha e convites, mais ou menos decentes, a compartilhar o espaço em sua companhia. “Qual espaço?” perguntava-me eu…









.

Chegados a Bilbao, debatendo-nos com o frio molhado daquelas latitudes, estávamos mesmo, em outro mundo.
Como podem cerca de 1000km fazer tanta diferença?
Não me venham com cantigas de que a Europa já anda a uma só velocidade.
Aquela cidade existe para além da provinciana Lisboa como Paris já o fez na mesma medida há 200 anos atrás.
Não cobiço o estrangeiro por mania, apregoando-lhe todos os predicados, enquanto repudio a minha terra.
Não, de todo.
Simplesmente, há fenómenos sociais e culturais que saltam aos olhos – tendo quase sempre como pano de fundo a cidadania e o civismo.




Um meu aluno, ao aperceber-se na rua de inúmeros casais homo, homens e mulheres, perguntou à jovem recepcionista do nosso hotel se haveria uma qualquer parada gay por aquela altura.
Pois haviam de ver o olhar curioso da menina buscando nas ruas, sei lá, algum folclore e aparato colorido típico desses corsos.
Só encontrou, claro, casais de mãos dadas,
como todos os dias, independentemente do seu género. Não havia notado nada. Pois claro!
Nunca lhe foi dada a conhecer outra realidade que não aquela.
Cresceu e foi educada na diversidade e isso fez daquela menina uma jovem cosmopolita onde a palavra “diferença” se aplica apenas às opiniões e aos gostos – e nunca à discriminação
Noutra ocasião fomos surpreendidos por uma educadíssima funcionária da companhia dos carros eléctricos que, percebendo na Central alguma atrapalhação nossa em recuperar o troco na máquina de venda automática de bilhetes existente em qualquer paragem, veio ao nosso encontro, em plena carruagem e, dirigindo-se certeiramente a nós por entre várias dezenas de passageiros, devolveu-nos o dinheiro que havia ficado retido na máquina, juntamente com um sorriso e um tímido “Have a good day!”.














Ainda hoje me pergunto
como diabo aquela senhora nos encontrou no meio de tantos iguais(?) a nós?”. Prefiro pensar que haveria um registo vídeo na paragem e que, dessa forma, pudera observar-nos e, consequentemente, identificar-nos na carruagem.
Senão, sou levada a crer que o provincianismo não se vê pelas cidades per si, mas principalmente pelos seus naturais.
Os japoneses “vestem” máquinas fotográficas ao pescoço;
e nós, portugueses, o que vestiremos nós?
nota final: Penélope, a fiel e paciente esposa de Ulisses, permaneceu no seu lar enquanto o marido se metia em trabalhos, aquando do regresso da guerra de Tróia.
E se Penélope tivesse partido à aventura, pergunto eu?
Teria desenhado muito?"

Moira de Trabalho

7 comentários:

  1. Bom texto. "Há uns anos atrás" é que não! Principalmente vindo de uma professora, seja de que disciplina for. "Há" já tem o sentido de passado não precisando do "atrás" para nada. É como "subir para cima", "recuar para trás"...

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  2. E belos desenhos acrescento eu.

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  3. As críticas são bem vindas e as correcções ainda mais,só lamento o Anônimo, da assinatura...

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  4. seguramente, não tão bem...
    (porque será que os meus moleskines e uni-ball não desenham assim? estarão avariados?)

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  5. Se eu soubesse desenhar assim, já podia ter dezenas de Moleskines cheios de viagens e histórias magníficas.Mas como não sei limito-me à Fotografia.A propósito como é que faço para receber o meu Prémio?

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  6. Olá Adriano,vou contactar consigo via mail para combinarmos o melhor local para a entrega.
    E,já agora,Parabéns,mais uma vez!

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  7. Escrito...é uma maravilha...desenhado....mais outra!!!!
    Mas se ouvissem... contado...nem vos conto!!!!
    (Estão a perceber? ouvissem...contado...conto...)

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