Usava-o, afinal, todos os dias, há muitos dias.
Primeiro daquela forma estúpida que só os adolescentes se lembram, querendo parecer mais velha.
Depois, tarde demais, já como hábito entranhado, como o cheiro nos seus farfalhudos caracóis. Quando ontem apagou o seu último cigarro, plena de consciência, a ocasião para reflectir sobre ele foi, portanto, mais que oportuna.
Habituara-se desde muito cedo a viver sozinha.
Habituara-se desde muito cedo a viver sozinha.
Os pais, ciosos da sua educação, mandaram-na para a metrópole, aos dezoito anos, com uma mala de verão numa mão e uma colecção de caixas de fósforos na outra, resquício único da sua infância e prontamente confiscada no embarque.
Chegada deparou-se com o inverno setentrional totalmente desconhecido para si, habituada ao trópico de Capricórnio; as roupas, logo ali, inúteis.
A tia, distante de afectos, também não chega para o calor que precisava naquele momento, e em muitos que se lhe seguiriam.
Depressa percebeu que, além dos fósforos, a própria infância lhe estava a ser confiscada.
Mas deixou-a ir sem lamúrias.
Foi andando, estudando, conhecendo gente.
Foi andando, estudando, conhecendo gente.
Alguns amigos. Cresceu, formou-se, teve casa.
Nunca casou.
Preferia o hábito da solidão ao hábito de ter gente por perto.
Como Wilde, só acreditava na sociedade dentro de si e fazia disso gala.
O único companheiro, sempre presente, era o cigarro.
Um romance tão longo e pacífico que nunca sequer se lembrou de o pôr em causa.
Mais tarde, um cão veio partilhar esse casamento.
E viviam felizes os três.
Profundamente conhecedora da sua natureza, genuína como só podia ser, não se permitia investidas que à partida sabia serem infrutíferas.
Profundamente conhecedora da sua natureza, genuína como só podia ser, não se permitia investidas que à partida sabia serem infrutíferas.
Não procurou nunca parecer mais esperta do que era, devia pouco ao “parece mal” e com isto era de uma auto-suficiência assustadora.
Para os outros.
E assim, amigas chegadas havia realmente apenas três, que disputavam a primazia da sua amizade, nunca se contentando com um exaequo.
E assim, amigas chegadas havia realmente apenas três, que disputavam a primazia da sua amizade, nunca se contentando com um exaequo.
Alternando a companhia delas, haveria de passar muitas noites em debates e confidências.
A década convidava às experiências alucinógenas e sem estranheza a erva tomou o lugar do tabaco.
A década convidava às experiências alucinógenas e sem estranheza a erva tomou o lugar do tabaco.
Nada. Nem a menor manifestação.
Sã e sóbria, plena de serotonina, como naturalmente o era.
Mais tarde, as linhas de cocaína, cuidadosamente dispostas sobre a mesa da sala para logo vir o cão bufar para cima do tampo e assim voarem doze contos pelo ar.
Vieram as americanas e as advertências: cuidado que esta é mesmo a sério!
Mais tarde, as linhas de cocaína, cuidadosamente dispostas sobre a mesa da sala para logo vir o cão bufar para cima do tampo e assim voarem doze contos pelo ar.
Vieram as americanas e as advertências: cuidado que esta é mesmo a sério!
E não mistures álcool!
Qual quê… Dentro do carro, esperando o efeito.
Os minutos passam, imensos; vêm as badaladas, a festa do novo ano e já se interroga se afinal aquilo não seria uma aspirina.
Desiste, animada com a convicção de achar que caiu num caldeirão de boa disposição quando era pequenina e todos os acessórios não a farão chegar mais alto que a sua própria essência.
Galvanizada pela emblemática experiência das drogas apaga, então, o último cigarro.
Galvanizada pela emblemática experiência das drogas apaga, então, o último cigarro.
E é no momento seguinte que procura a razão daquele vício na sua vida.
Revive os últimos trinta e cinco anos de fumadora em segundos.
Sem consternação, chega rapidamente à conclusão que, tendo vivido já tantas vidas como os gatos, o cigarro fora, realmente, o seu único companheiro, o denominador comum de dois hemisférios, três amigas, quatro apartamentos e dois cães.
E ali o deixou, jazendo no cinzeiro, junto às passas dos desejos.
Anunciou a si mesma: deixei de fumar; passemos à vida seguinte!
Na manhã seguinte, a tirada do costume: ano novo, vida nova.
Na manhã seguinte, a tirada do costume: ano novo, vida nova.
Pôs a mesa no jardim, sobre a relva, como não era hábito.
Para celebrar, acompanhou com pequeno-almoço à inglesa e um belíssimo charuto cubano.
Dear Prudence
Dear Prudence, loved it, every little bit of it. :-D
ResponderExcluir(The sun is out, the sky is green...)
Dear Prudence...
ResponderExcluirAbençoada serotonina!
Não tenho relva nem jardim, mas vou experimentar os Cubanos, a ver se resulta...
Excelente texto.
Dear Prudence, uma das minhas autoras, só pode ser Mulher, preferidas, da Antologia de Micro Contos do Galo. Parabéns, mais uma vez.
ResponderExcluirBelíssimo!
ResponderExcluirUma narrativa envolvente, sem dúvidas e sem porquês!
Um conto feliz, quando se podia pensar o contrário...
Go on, Dear Prudence!
Ode ao charuto e com razão.
ResponderExcluirVejos dois amigos sofrendo e muito, por culpa dos cigarros.
E eu que andei pendurado em cachimbo durante mais de 30 anos, perdi o gosto repentinamente e sem saber porquê.
Mistérios da vida !
«ODE AO CHARUTO E COM RAZÃO» ZÉ MANEL ??????????? ESQUECEU QUE O SEU SOGRO TEVE UM CANCRO NA LÍNGUA DEVIDO AO CHARUTO?????? ESTE BLOG TOLDA-LHE A MEMÓRIA ?????!!!!!!!!!
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