Era o verão do seu contentamento.
As aulas terminaram há dias.
Para o ano, a faculdade.
Irradiava por isso um sorriso de glória muito difícil de ser contrariado e a confiança, mesmo nas mais pequenas tarefas, era absolutamente inquestionável.
Ela simplesmente luzia.
Como sempre, dois meses de férias na terra dos pais.
O primeiro sem e o seguinte com eles.
A casa dos avós ainda era um refúgio, tão seguro quanto nostálgico, que todos os anos parecia encolher na razão inversa do seu crescimento.
Os velhotes, ambos de chapéu preto e bigode, recebiam-na com a pureza própria do campo, os caldos de galinha, o chapéu de palha obrigatório no sol traiçoeiro da província.
Ela, que vinha habituada às praias da costa, relutantemente acatava aquela sombra, e vingava-se fazendo questão de pisar descalça a horta, o milho descascado na eira e as lajes de granito dos quintais.
Nesse ano, que haveria de ser o último, teve permissão para ir às festas da terra. As nossas senhoras da Agonia, da Conceição, das Dores convidam.
As gentes da terra são pacatas e todos se conhecem.
Os emigrantes trazem todos os anos novos filhos que contracenam com os filhos da terra numa fogueira de vaidades: as marcas dos ténis, o falar estrangeiro, os penteados excêntricos.
Ela achou-lhe graça por isso mesmo – de tão aparatoso que ele actuava naquele cenário.
Vestia mais Paris que Lisboa, num misto de modernice com mau gosto que ela claramente identificou e mais depressa minimizou; umas patilhas abaixo do lóbulo enfeitado de brilhante. Tinha um olhar maroto, cruzado de maldade.
Trocaram logo vários piropos mais ou menos decentes.
Dançaram as modinhas à distância que os comentários das beatas iam permitindo.
Beberam Sumol e Sagres, muitas minis, do mesmo gargalo e enfeitaram-se de papelinhos de rifas nos cabelos.
Saiu-lhes um galo de Barcelos que logo decidiram ser o primeiro bibelot da sua futura casa.
O riso era agora uma forma de comunicação contínua, só interrompido por sonoras gargalhadas adornadas de hálito ébrio.
Afastaram-se do adro da igreja.
Caminharam pelo carreiro junto ao ribeiro, sempre rindo, até à levada do rio, mais à frente.
Ela sentou-se numa velha pedra de mó ali deixada e, sem surpresa, beijaram-se como nos filmes. A excitação tomou conta de si; era o primeiro beijo a sério, aquele que ensaiara vezes sem conta. Ele parecia já ter ensaiado mais a sério e mostrava-o com vigor, demasiado vigor.
Ela, sentindo aquele aperto, tão firme e possante, não a deixando arredar-se sequer para sorver ar, largou o riso e inquietou-se.
Não sabia se seria fulgor manso ou investida cruel.
Muniu-se das mãos para o agarrar e jogar para longe de si, mas já não conseguia afastar-se dele. O corpo dele contorcendo-se contra o seu, em gestos animais, procurou o encontro do ventre e arranjou forma de o achar.
As mãos dadas, atadas pelos punhos, as bocas juntas, os dentes cerrados.
A colisão dos quadris, nus, nas suas coxas que queriam, a todo o custo, manter-se fechadas.
Ao longe o som da banda, o louvor à Nossa Senhora da Agonia, que agonia, que dores.
Não houve sequer tempo para falar, e gritar só de raiva muito mais tarde.
Ainda foram juntos de novo para a festa, com um nojo imenso de si…
O resto do verão na terra, penosamente, já com os pais.
Viriam a descobrir meses mais tarde, sem ser pela sua boca mas pelo corpo.
Nem uma palavra, tamanha a repulsa e a culpa que achava ser sua.
A faculdade foi-lhe vedada.
O convite a sair de casa seguido de uma guarida inconstante por parte de amigas.
Ainda assim arranjara trabalho e mantinha-se séria.
Não soube mais dele e os pais não mais quiseram saber dela.
E esta é a história de amor que ela conta ao filho quando este pergunta pelo pai que morreu quando ele ainda estava dentro da barriga da mãe.
É a estória em que ela não acredita.
Mas só ela.
A que não conta, mas que sabe ser verdade, oculta-a, em itálico, dentro de si.
Mrs. Dalloway
quarta-feira, 22 de abril de 2009
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Eu cá gosto da escrita assim, straight-to-the point, sem gongorismos. Parabéns Mrs. Dalloway. :-)
ResponderExcluirP.S. Marleen Gorris - Mrs Dalloway (1997)
http://www.imdb.com/title/tt0119723/
Writers:
Eileen Atkins (screenplay)
Virginia Woolf (novel)
Cast:
Vanessa Redgrave ... Mrs. Clarissa Dalloway
Natascha McElhone ... Young Clarissa
Michael Kitchen ... Peter Walsh
Sarah Badel ... Lady Rosseter
Lena Headey ... Young Sally
John Standing ... Richard Dalloway
Robert Portal ... Young Richard
Oliver Ford Davies ... Hugh Whitbread
Hal Cruttenden ... Young Hugh
Rupert Graves ... Septimus Warren Smith
Amelia Bullmore ... Rezia Warren Smith
Margaret Tyzack ... Lady Bruton
Robert Hardy ... Sir William Bradshaw
Richenda Carey ... Lady Bradshaw
Nem uma palavra a mais, nem uma palavra a menos.Parabéns.
ResponderExcluirDirecto como um punhal, seco como grãos de milho na eira!
ResponderExcluirAté senti a garganta apertada!
Parabéns Mrs. Dalloway!
A isto sim chamo Conto. Nem pequeno, nem grande, nem micro...apenas um Grande Conto.
ResponderExcluirÉ impressão minha ou cada vez mais se tem vindo a acentuar mais uma determinada "escrita no feminino" neste Prémio?
ResponderExcluirAtenção, não é uma crítica é apenas uma constatação.
Muito bom este conto.
Estou consigo Adriano. Ultimamente é só contos de "gaijas"...
ResponderExcluir"maichos", contem-nos de bocêsdes, or else... (shut the fuck up) :-P
ResponderExcluirResumidamente uma história fantástica! Uma realidade para muitos. Parabéns Mrs. Dalloway*
ResponderExcluirConselho da polícia na minha terra - Se não há nada a fazer, o melhor é relaxar...e gozar !
ResponderExcluirFalando sério, muito bom, mesmo.