segunda-feira, 6 de abril de 2009

A imagem do meu Pai

Hoje de manhã, quando me olhei ao espelho, vi o meu Pai.
O cabelo branco. As sobrancelhas espessas, ainda pretas.
Os lábios grossos. A cara redonda.
Um começo de papada. O sorriso melancólico.
Pensei estar a ver um fantasma.
O meu Pai morreu há anos. Com Alzheimer.
( Talvez venha daí a minha necessidade compulsiva
de alinhar memórias. De colar fotos rasgadas.
De juntar fragmentos. Pontas soltas.
De mergulhar no passado para deixar testemunhos.
Histórias da adolescência. Da tropa. De amigos.
De amor, poucas. E é pena, seriam as mais interessantes).
Olhei-o, um pouco de perfil, e ele imitou-me o gesto.
Fechei os olhos, mas quando os abri, ele lá estava.
Ainda a pestanejar.
Pensei beijá-lo no rosto,como sempre fiz.
Desde miúdo até aos seus oitenta e tais.
Mas algo me inibiu...
Estranhei que não me tivesse dito já
" Isto está a precisar é de um Salazar.
Ao menos esse era honesto..."
Conservador, de direita, sempre foi contra os"comunas",
o 25 de Abril, que lhe nacionalizou a Companhia
onde trabalhava desde novo.
E o Mário Soares" esse malandro!".
A mim achava-me um perigoso activista
da extrema esquerda.
Assim como não percebia que gostasse de Picasso,
"qualquer puto de cinco anos faz aquilo!"
arte abstracta ou música concreta.
Que usasse cabelo comprido"coisa de mulheres"
ou um bigode revolucionário"um nojo!".
Racista e católico. Antidemocrata. Egoísta.
Só no egoísmo eramos família.
Inteligente como conheci poucos. Frio de emoções.
Pouco expansivo. Trabalhador. Guloso.
Também aí estavamos próximos.
E agora para ali no espelho a mirar-me os movimentos.
Pela memória passaram-me os poucos meses do seu final.
A decadência física. A degradação mental.
O esquecer quem eu era. O não me reconhecer.
Embora toda a vida tivesse esquecido quem eu era.
O seu Filho. Único.
Cocei a cabeça, perplexo.
E ele, perplexo, a olhar para mim, coçou a cabeça.
Afastei-me do espelho.
Só então, aquela imagem do passado. Do presente?
Partiu para outras paragens.

12 comentários:

  1. Depois de se ler este( magnífico) texto acerca do seu pai, percebe-se, e dá-se ainda mais valor, ao que há alguns dias escreveu a respeito de um dos seus filhos.

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  2. É muito bom "reconciliarmo-nos" com os nossos pais.

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  3. O quê???????? Não é um microconto???
    Muito bom,mesmo!

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  4. Ainda estou em estado de choque.
    A sua capacidade de transmitir emoções surpreende-me sempre.

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  5. Blá, blá, gu-gu, dá-dá [baba pingando], surp [sorvendo a baba], glá, blá, bleu.

    Qualquer coisa que eu escreva soará da mesma forma que o acima exposto.

    Isto quando se acaba de ler João Viegas.

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  6. Muito bem escrito, como habitual.

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  7. Se há coisas que eu não sou é modesto...mas tenho a perfeita noção do valor, ou falta dele,daquilo que escrevo.
    Penso que confundem talento, mas agradeço os elogios na mesma,com sinceridade e exposição.
    Por opção, decidi( chamem-lhe catarse, autopsicanálise, o que quiserem)falar abertamente de temas, que nunca ou quase nunca debati pessoalmente, sem preocupações de ficar bem na fotografia, sem burilar arestas, sem limar imperfeições.
    Essa franqueza emocional tem sido, por vezes, confundida com talento mas convêm não perdermos a noção dos nossos, meus neste caso, limites.Obrigado...Obrigado (à maneira da Amália ).

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  8. A busca,ansiosa,inquieta,alegre do prazer faz-nos viver e traz alegrias e emoções por vezes inesperadas...fui à procura de uma receita de sangria de champagne e encontrei um texto que para alem do talento inequivoco revela, como se eu já não soubesse, a grande dimensão humana humana do escriba...euma extraordinária capacidade de transmitir emoções..o que eu já devia saber..tenho andado distraido...não vou emitar te na escrita apenas dizer JOÂO ÉS MESMO UM "GAZ" PORREIRO.. os rapazes õrgulham -se de ti.. e os amigos se autorizares tambem...grande abraço Pedro

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  9. O tempo que passa e que aí vem, talvez venha a dar alguma razão ao Pai mas a saudade que leva ao recordar, transmite a emoção dos valores que são eternos e que nos puxam para o passado sem receio do mar salgado que chega aos nossos olhos.

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  10. Parece-me que afinal não era só eu que hoje estava melancolica...

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  11. conheci-o mal.
    mas gostava dele (nalgumas coisas.. outras não sabia).
    conheci-o mais pelos teus olhos, mas também pelos do meu pai, que por outras vidas - as deles - se cruzaram (pouco).
    gostei de o ver...
    sobretudo pelos teus olhos.
    e lembrei-me do meu.
    vou telefonar-lhe depressa.
    obrigado!

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  12. Esta noite, em que estou tão só, depois de falar ao telefone com a minha mãe, vim espreitar o galo. E que surpresa levar-me até às imensas saudades do meu pai a esta hora da noite, na minha casa tão silenciosa. Quando me olho ao espelho não vejo o meu pai, apesar do nariz e do cabelo igual ao dele. O meu também era conservador, católico e de feitio difícil. Separava-nos 57 anos de diferença…sou uma filha mais nova que a neta…e com ideias e maneiras de viver a vida muito diferentes das que ele viveu na sua juventude ou quando foi pai no primeiro casamento.
    Choques, discussões, tratados de paz…e uma zanga terrível, que me marcou para sempre.
    Hoje, que sou mais velha, que sou mãe e que vejo outros pais, sobretudo os separados, com tão pouco tempo para os filhos, percebo o enorme esforço que ele fez para não deixar de estar comigo sempre que podia, agradar-me e chegar até mim, vindo de uma educação do inicio do século XX, para aceitar as viagens, as saídas à noite e as roupas que o escandalizavam. Que saudades que tenho dele. Que saudade de lhe dar um beijo e de partilhar com ele o que descobri sobre um novo vinho, uma viagem que fiz ou de voltar a convidar para ir comer um gelado ao Santini. A primeira vez que o meu pai comeu um gelado tinha mais de 80 anos e fê-lo depois de eu o convencer que os gelados do Santini eram dos melhores do mundo.

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