segunda-feira, 6 de abril de 2009

O Último Conto

A tensão entre os dois não faria imaginar o que se estava a passar. Casados há quase 30 anos, os filhos fora do ninho, as carreiras estáveis, a casa de férias, as viagens para o Brasil, tudo era de uma previsibilidade angustiante.
Despediam-se de manhã com o beijo habitual, ele já de jornal numa mão e chave do carro na outra. Ela ficava um pouco mais, para dar um ar de casa à mesma, como costumava dizer, e logo o imitava, a caminho do seu emprego.
As rotinas eram matemáticas. Depois do trabalho, casa à hora do costume, jantar à luz do telejornal, serão em peúgas de andar por casa, a dormitar ferozmente no sofá, um e outro, para acordarem sobressaltados de madrugada, rosnando por uma cama, onde dormiriam a posta-restante de um sono mal temperado.
A intimidade entre os dois há muito que se esvaíra.
Fruto do quê, não sabiam dizer. Demasiado acostumados,
aventava ele ao espelho enquanto fazia a barba;
que sempre fora nenhuma, assegurava ela dentro de si.
E assim passaram as últimas décadas até ao momento
em que ela se apercebeu que ele mudara.
Não sabia há quanto tempo mas pudera constatar,
sem qualquer fio de dúvida, que ele chegava a casa
cada vez mais cedo e era logo vê-lo sumir-se no escritório,
até ser arrancado para a mesa do jantar.
Depois deste, lá voltava ao computador, deixando para trás
as peúgas de trazer por casa sozinhas, sob a almofada do sofá.
E só voltava a encontrar a mulher já na cama, depois da birra
de sono que esta envergava sempre antes de subir para o quarto.
Começou, até, a levantar-se mais cedo.
O computador, o seu destino.
Intrigada, naturalmente que ela lhe perguntou o que fazia
naquelas horas. Primeiro, timidamente, lá lhe confessou
que agora colaborava num blog e que lhe estava
a dar grande prazer poder escrever e ser lido.
Como essa pergunta da mulher mostrava que ela se interessara,
tomou isso como um convite e todas as noites partilhava
com ela os posts, os comentários, os comentários aos comentários.
Inicialmente ela achou aquele hobby, se não inofensivo,
pelo menos construtivo.
Ele sempre gostara de escrever, sabia ela pelas cartas
de antigamente que trocaram nos tempos da tropa;
que guardava escritos nas gavetas da secretária
e até que os acarinhava, o que concluiu pelos cantos desgastados dos papeis sortidos.
Mas não tardou muito para que ela começasse a sufocar naquele labirinto de relatos que lhe toldavam a atenção dos concursos da TV ao serão. Optou, primeiro, por fingir que não ouvia, esperando que o seu desinteresse o levasse a desistir. Como não resultou, partiu para o contra-ataque: desancava os temas, insultava os comentadores, ridicularizava os nicknames, tudo servia para agastar aquele fervor da escrita do marido que lhe tirava o sossego. Chegou mesmo a chamá-lo de imaturo por precisar daquele mimo cibernauta para lhe dar consolo."Essas massagens virtuais ao teu pobre ego mal acarinhado só vão contribuir para que a solidão te consuma e, em última instância, que destruas o nosso casamento!”- foi a afirmação que rotulou como último aviso.
E, de facto, ele cada vez mais se consumia. Revirava agora as gavetas buscando os papelinhos escrevinhados para reciclar e dar-lhes outra roupa; as histórias lúdicas da infância, os episódios épicos da tropa, até anedotas ele via e revia para ter matéria sobre o que escrever. Por fim, uma bela tarde no emprego, olhando-se ao espelho da casa de banho, ele viu-se.
Mais magro e olheirento. Mal escanhoado pela pressa da manhã.
O chefe a impor-lhe ultimatos pela sua falta de dedicação.
Isto tinha que acabar. Passou as mãos molhadas pelo rosto
e ficou assim, mais uns momentos, pingando para o lavatório
a estranhar aquele homem do reflexo.
Decidido, irrompeu pelo gabinete.
Pôs umas vírgulas num último conto que escrevera, publicou-o
no blog e despediu-se deste, para nunca mais voltar.
Resoluto, voltou para casa.
Cheio de vida, observava cândido a realidade que sempre
ali estivera, esperando por si: as árvores da sua alameda,
o cheiro a pão quente da fornalha vespertina da padaria,
os bancos apinhados de namorados e as suas inscrições
nas cascas dos plátanos.
Encheu o peito de ar e subiu o alpendre de casa,
decidido a mudar também o rumo do seu casamento.
Sentia no ar o cheiro incontornável do amor.
Rodou a chave e sentiu um arrepio.
Não havia móveis, apenas a sua secretária com um post-it colado ao computador.
O calafrio tomou a forma de um aviso de desmaio e sentou-se.
Pôde então ler: “Vou viver outra realidade que não a virtual”.
A sua mulher fugira com o im4real69.

Dear Prudence

8 comentários:

  1. Muito oportuno Dear Prudence. Gostei muito.

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  2. ...I'm for real sixty nine ?!?
    Onde é que se arranja outro,if you please ?
    Muito bem contado e uma forte crítica, talvez, a todos nós, em maior ou menor grau.
    Eu por mim, como não me sinto escrava, achei divertido.

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  3. Que bom seria se eu pudesse contar assim!!!!
    Muito bom, muito real (mesmo antes da existência de blogs...)

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  4. Amei o conto. Mas ainda mais o 69, mesmo no finalzinho...

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  5. Bem contado, algo que é mais do que comum em todo o mundo, civilizadou ou não !
    E parece que alguns de nós sentiram um "apertozinho", não é verdade ?

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  6. Muito actual como alguém já disse, mas penso que muito mais do que os blogs, os I5, Twitters, Face Books, Second Lifes, podem ser um perigo real para casamentos, baptizados e outros tipos de convívio.
    Sabendo dosear as coisas, colaborar num blog como este, por exemplo, pode ser um excelente e instrutivo passatempo. Agora se uma pessoa leva o dia a ver futebol, a jogar às cartas,a ver telenovelas, a tratar do carro, etc, etc tudo pode acabar por ser um exagero.

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  7. Estou de acordo com o Pedro Miguel e penso que neste grupo são tudo pessoas com uma grande variedade de interesses que não ficam presos ao computador.
    Quanto ao texto, como já tinha sido o caso do anterior da/do mesma/o autor/a, um excelente pedaço de literatura.

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