A sua vida foi a sua voz. Quando esta se ausentou, aquela seguiu-a - e ela começou a morrer. Esses dias do fim foram um rio sem água. Amália era o seu canto. Sem ele, sentia-se como alguém que tivesse perdido o rosto. Ela cantava, cantando-se. Era esse o seu cogito: canto, logo existo. Quando subia ao palco, procurava a salvação. Antes, ficava assustada, com medo de que ela lhe falhasse. Por isso, caminhava para lá com a ânsia de quem se dirige a um duelo. Ao cantar, as suas pulsações saltavam de oitenta para cento e oitenta. Só quando os aplausos surgiam, ela conseguia desfazer a sua aflição, destruir o seu pânico. Uma noite, Amália estava no palco. Olhei-a dos bastidores e vi uma cabeça a fazer ângulo com o mundo e um corpo atado às palavras que iam sendo cantadas. Ela sabia que, muitas vezes, se dava um milagre. Um dia, vi-a regressar ao camarim ainda trémula de transe.
As grandes vozes não têm antes, nem depois. Levam o instante à eternidade onde as ouvimos. Aí, tudo se fractura e funde num grito que não alcança o fim. As grandes vozes são um convite à perdição. Escutamo-las e deixamos de ser quem somos, ausentes de uma presença que já não nos pertence. As grandes vozes são animais selvagens que se atiram ao mundo para o tragar. São um sinal de que o homem não se esgota no homem - e de que o homem não esgotou o homem.
Uma grande cantora começa por estranhar a sua voz e o prodígio dela, para depois a tornar causa do martírio, razão do êxtase, confirmação do ser. Principia por achar nela a sua virtude e acaba por torná-la o seu vício. Ouve-a no milagre de acontecer - e, em si, todas as linhas convergem para esse ponto. Sabe que a voz é sua, mas ouve-a como se fosse alheia. Troca-se por ela. Cada grande voz é o espelho de quem a tem. Já sem voz, Maria Callas olhava o espelho vazio e, para se ver, passou os últimos anos da vida a ouvir, nas gravações que lha restituíam, essa voz perdida. Escutava-a como ela era antes de se terem traído uma à outra. Ouvia-a como quem só percebe o que perdeu depois de o ter perdido. As cantoras falam da sua voz com uma superstição mais forte do que o orgulho. Para elas, o prodígio torna-se sempre um presságio. Quando a voz lhes morre, ouvem-na como aqueles que olham nos céus os astros já mortos que continuam a brilhar na noite intacta.
Agora, lembro esse tempo em que os meus dias corriam para as minhas noites. À hora em que as luzes se acendem, eu subia a escada da casa da Rua de São Bento. Na sala, Amália estava no centro de um círculo de olhares. Com uma inteligência capaz de destruir e de construir, com uma astúcia apta a salvar ou a perder, tinha resposta para tudo, menos para o que lhe era longínquo ou indiferente. Nessa sala de azulejos, madeiras e veludos, tudo o que acontecia apontava para ela. Era lá que escolhia o que cantava, que contava histórias, que ouvia louvores. Era lá que não ouvia o que não queria ouvir. Essa sala podia ser tudo: salão aristocrático, casa de fados, acampamento de ciganos, círculo cultural, capela de aparições, consultório de vidente, camarim de intrigas, palco de teatro, onde ela fazia de Amália e nós de seus adoradores, porque menos do que isso não aceitava. Todos passavam por ali: santos e pecadores, aristocratas e plebeus, marialvas e feministas, reaccionários e revolucionários, inocentes e perversos, génios e medíocres. Ela resistia a todos, a tudo. A sua conversa era sempre uma passagem para o seu mundo. Mas só não lhe interessava o que não tinha interesse.
Costumo repetir as palavras que me dão o seu melhor retrato: Amália gostava de rir e de chorar. Tudo o resto lhe parecia inútil ou desnecessário. Ela afirmava: antes mal acompanhada do que só. Pagava por isso um preço elevado. Alcançavam-na e ela não se retirava. Levavam-na e ela deixava-se ir. Pediam-lhe e ela dava. Gostava que gostassem dela. Disse-me: "Que gostem às vezes de mim não chega. Preciso que gostem sempre. Mesmo quando não o mereço. É então que ainda preciso mais que gostem de mim."
A exposição "Amália Coração Independente", que está até ao final do mês no Museu da Electricidade e no Museu Berardo, é feita de imagens, sons, registos, documentos, objectos. De jóias, vestidos, vozes, memórias, testemunhos, obras de arte. Atravessamo-la e somos atravessados por ela. Aí a vemos perfeita e humana, jovem e idosa, encenada e espontânea, amada e caluniada, portuguesa e apátrida. Devolvida ou revelada, aí a recuperamos, a reconhecemos, a redescobrimos. Uma visitante dizia para uma amiga: "Ela era muito bonita quando era nova..." Uma espanhola, parada em frente dos diamantes, exclamava para o namorado: "Son las joyas de una reina!" Eu ouvi-as dizer isto e dei-lhes razão.
Amália era a sua voz e a sua voz era uma visão do mundo. O canto de Amália vem da morte para a vida. Nele, a ave da tragédia levanta voo e lança sobre o mar a sua sombra enorme.
José Manuel dos Santos colunista regular do "Actual"
quarta-feira, 27 de janeiro de 2010
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O "endeusamento" em nada beneficia os que já partiram...
ResponderExcluirAxo que vou ser 'políticamente incorrecto' aqui, à força toda...
ResponderExcluir:-)
A única fase da senhora que me interessa é quando o Alain Oulman lhe escrevia as canções, e quando ela cantava Pedro Homem de Mello ou David Mourão-Ferreira ou Manuel Alegre ou Luís de Camões.
Gostos e côres...
Esta Crónica de José Manuel dos Santos não me sugere endeusamento, antes homenagem, que poderia muito bem ter sido escrita, quando Amália ainda era viva.
ResponderExcluirAmália, a partir de uma certa fase da sua vida, era mais amada e reconhecida lá fora, do que cá dentro.
Nem sempre valorizamos aquilo que temos!
Nos dois espectáculos de comemoração dos cinquenta anos de carreira, no Coliseu de Lisboa (foi condecorada pelo, então, Presidente da República, Mário Soares, e parecia uma criança, aos saltos no palco, de alegria genuína...), vi-a cantar o conhecido poema de Pedro Homem de Mello, "Povo que lavas no Rio".
A voz era já rouca, mas continuava TUDO lá!
Afinal, não será a voz humana o instrumento musical mais perfeito de todos?!
Como Maria Callas, Amália não queria ser apenas admirada.
Queria ser amada!