A data, final de Setembro de 2001.
Os ecos dos acontecimentos extraordinários ocorridos no dia 11 desse mesmo mès ainda ressoavam a desoras, dentro de nós, mostrando a fragilidade da sociedade que todos construíramos.
Para aqueles, que como eu, tinhamos vivido e , posteriormente visitado muitas vezes, a grande metrópole, tendo subido ao topo da Twin Towers e assistido a concertos de música de câmara, no sopé das mesmas, o impacto talvez tivesse sido ainda maior.
Mas, desta vez, encontrava-me em Paris.
Uma cidade a que, por razões profissionais, me desloco com frequência e onde , de alguns anos a esta parte, me hospedo sempre no mesmo pequeno hotel da Rue de Turbigo.
Um hotel simples, sem grandes luxos, mas com tudo o que necessito para as duas, três noites, no máximo, que passo na capital francesa.
Já conheço os empregados pelo seu nome próprio, com destaque para Heidi, a solteirona da recepção, sei qual é o número do meu quarto predilecto e fico a uma pequena distância, a pé, de todos os locais onde tenho os meus meetings profissionais.
Após o final do dia de trabalho, lá pelas sete da tarde, e depois um breve descanso no hotel vou até ao Marais, um quarto de hora de caminhada, ou apanho um taxi para a Bastilha, a Rive Gauche ou para os Campos Elíseos.
Era esse o meu destino, nessa noite de Setembro.
Queria ir até à Megastore da Virgin, onde costumo encontrar livros de BD ou de cozinha, séries de televisão ou, simplesmente, deambulo pelos vários andares e sectores do belo edifício.
O taxi é sempre apanhado, com facilidade, na esquina da Turbigo com a Sebastopoul.
Foi o que aconteceu dessa vez...
O condutor era originário do Magreb com aquela fisionomia pied noir/ arabe tão comum a uma, cada vez maior, percentagem de parisienses.
Quando lhe indiquei o destino " Champs Elisées, prés du Megastore Virgin", vi que ele me observou com atenção dado que essa zona específica, com imensas esplanadas, está pejada de árabes que ali se reúnem, enquanto as mulheres se abastecem de cremes e perfumes na imensa Sephora vizinha.
A minha pele escurecida, por um recém Agosto passado no Algarve, tê-lo-á também induzido em erro, catalogando-me como um qualquer primo afastado do Dubai ou da Arábia Saudita.
A saudação confirmou o meu raciocínio "Maçal el Kheir", boa noite, a que eu respondi com "Chukran", obrigado, a única palavra existente no meu curto vocabulário árabe.
A partir daí, estava instalada a grande confusão.
A primeira pergunta surgiu de chofre" Quest-ce que vous pensez de l'histoire des tours jumelles?".
Só se eu fosse surdo, cego e vivesse numa qualquer ilhota deserta, poderia desconhecer o assunto, pelo que achei por bem assentir com um grunhido não comprometedor.
O meu sinal de concordância deflagrou os primeiros sinais de tempestade.
" Temos que acabar com esses cães infiéis...bande de voyous et fils de putaines!"
Voltado para trás, olhos incendiados, o rosto torcido num esgar de ódio, o chauffer vociferou" Il faut finir avec tous les americains..." e não contente com o extermínio ianque "...e com todos os ocidentais, quand même!"
Foi a altura de me começar a encolher no banco, posição em que me mantive até ao final da corrida.
O taxista, entretanto, transfigurara-se. Os olhos relampejavam dardos que aniquilavam a Torre Eiffel, o Empire State Building, o Big Ben, talvez mesmo o Corcovado ou a Torre de Belém...
On sait jamais.
O perfi, com um nariz adunco e uma barbicha incipiente, ganhara contornos de Bin Laden que, nos últimos dias, era presença constante em todas as televisões e capas de revista.
As magras mãos enclavinhadas no volante ameaçavam estrangular o demoníaco Bush, o cão renegado do Blair, o pauvre con do Aznar...
Esperei, em silêncio, qual o epítome que calharia ao 'nosso' Durão Barroso, mais tarde Zé Barroso, mas tal personagem não estava à altura do ódio daquele condutor, impregnado de fanatismo.
O 'cherne' escapara, incólume...
Nesse momento, passávamos em frente aos escritórios centrais da American Express, perto de l'Ópera.
Estranhei, porque não é este o trajecto habitual do percurso que já fiz dezenas de vezes, mas como sei que são imprevisíveis os caminhos do Senhor, ou de Alá, neste caso, mantive-me mudo e quedo.
O ter lido a palavra American, em letras garrafais iluminadas a néon, foi a gota de água para um ódio acumulado de anos, uma revolta ancestral alimentada por gerações, transbordasse numa caacata de fúria, num desejo explosivo de vigança.
" Que Alá me dè vida para ver o fim desta sociedade porca e pervertida."
Felizmente, subíamos já os Campos Elíseos. Mesmo antes de chegarmos à Virgin, pedi-lhe que encostasse.
"C'est bien pour moi, ici ..."
Sabia lá se o homem tinha explosivos amarrados à cintura e se em vez da Virgin que eu procurava, não iria directo para os braços de outras 40 virgens o que, confesso, me parecia um pouco excessivo.
Saí e vi que, observando-me melhor, à luz e em corpo inteiro, o taxista se tinha apercebido que eu , afinal, não era nenhum primo saudita
"Chien infidél..." Vociferou, enquanto arrancava com grande chiadeira de pneus.
E eu, na paz do Senhor, dirigi-me à Virgin ( ...pas de doubles sens, s'il vous plâit!).
domingo, 24 de janeiro de 2010
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Tantas referências, G., nem sei por onde começar...
ResponderExcluirA minha 1ª vex em Paris foi uma daquelas estúpidas excursões de finalistas (e eu nem era finalista...) e ficámos num colégio/dormitório qualquer nos arrabaldes (Athis Mons ? Juvisy-sur Seine-oú n'importe quoi ?) e nós os 5 (ou seríamos 7 ?) íamos todos os dias à boleia para a capital, porque o casal de profes. que era suposto vigiar-nos --- o gajú era o de Filosofia e salvo erro a gaijinha era de Trabalhos Manuais ou-lá-o-que-era... --- estavam muito mais interessados um no outro que em nóisitos, e a gente aproveitava para se escafeder...
Nunca tive chatices com árabes por lá (e eu adorava aqueles mercados de semi-fim-de semana, cheios deles, porque uma das minhas amigas (normanda, Nation, já não sei o qué feito...) tinha namorado com um kabyle, tipos norte da Argélia e de Marrocos, e sabia, e ensinou-me insultos em árabe, daqueles em que o dito que se meteu contigo, no metro, no RER, ou na rua sai dali disparado como se o rabinho lhe estivesse a arder...
Muito mais tarde voltei (aí já não tão estudante e tão teso...) e quando não ficava em casa de amigos, os meus hoteizinhos eram na Rue do Renard, ao pé do Pompidou, ou na Rue de Rennes, mais lá p'ra cima, ao pé do Champ de Mars ?
Devo confessar aqui que nunca tive nenhuma sorte com o raio da torre Eiffel, cada vez que eu subia lá acima baixava um nevoeiro cerrado em cima da cidade, não se via a ponta, "azar dos Távoras".
À noite, quando eu vivia lá com a Annie, íamos para a zona de Saint Michel/Saint Germain e escolhíamos sempre um daqueles caveaus com música de jazz fantástica, americanos que não se conhecia de lado nenhum, e "Stella Artois" e acepipes baratuchos.
Durante o dia, se ela não tivesse que trabalhar, o nosso poiso era nos Jardins du Luxembourg e arredores, excepto quando tínhamos outra ideia qualquer, por exemplo decidimos um dia ir a Versailles, 'caganda secca, como diria o Eça...
Das últimas vezes agora fico no 14éme (ou será o 21éme ? já não distingo, limito-me a espetar com o endereço dos meus amigos Pierre e Martine em frente dos lúzios do taxista, e depois o fulaninho mete-se por uma espécie de 2ª circular, ou eixo norte-sul, ou "circumbalaçong" numa versão muuuuito mais comprida, e ao fim de 1 hora (com sorte) lá conseguiu faxer o trajecto de Roissy até casa deles...
Depois, em chegando com sorte à hora do jantar, a Martine cozinha codornizes, uma delícia, nem saberia como começar a fazer.
O Pierre despacha-se, pede desculpa a toda a gente, e enfia-se na cama, ele é escultor e o atelier dele fica ao pé de Versailles, e ele recusa-se a conduzir, é um saco p'ra se lá chegar...
Paris, Londres, Barcelona, Lisboa, Viseu, Firenze, Perugia, Gôa, Brasília, Budapest, Cascais e mais umas quantas cidades pertencem-me... bom, tanto quanto a todos vcs.
:-))
Galo...
ResponderExcluirEstes "Taxis" estão cada vez mais ricos, de dia para dia!
O "Taxi" de ontem, com o Pantera Negra a entrar contigo em Manhatan, provocou-me várias das minhas sentidas gargalhadas, e o de hoje, com o "nonsense" e o irónico da situação, algumas amargas reflexões...
A caneta corre-te fácil e o resultado são histórias muito bem contadas,
que mantêm a nossa curiosidade até à última linha!
Alvega...
Mais uma página dos teus "Diários"?!
Qual quê, são apenas memóriazinhas de caca e fait-divers, nada de muito relevante...
ResponderExcluirA propósito (ou nem tanto) lembras-te da Virgin Megastore da praça de Catalunya (Barcelona) e do disco da Victoria de Los Angeles que lá adquirimos ? E quem ficou com ele ? Acho que o deves ter para aí...
Aqui fica ela , creio que isto é Schumann em cima do Heinrich Heine e este pianista não era o acompanhador preferido da Christa Ludwig, e que foi prof. do Nuno V.A. ?
E a propósito de árabes, aqui fica alguém de que provávelmente nunca ouviram falar
ResponderExcluira fazer um fabuloso crossover basto improvável...
Mas o mundo é assim mesmo... inch' allah ou oxalá se ponha mais nesta direcção...
:-)
Ah, será que me esqueci de dixer ?
ResponderExcluirEla não é bem exactamente árabe, é de Kabylie, umas montanhas ao norte que se chamam Riff salvo erro (eles eram berberes), mas agora já deixaram de ser todos altos e loiros, o sangue está muito misturado, o que até nem é de todo má ideia...
:-)
Claro que tenho o disco...
ResponderExcluirChama-se "Sur les Ailes du Chant", e acho que ainda nem tinha leitor de CD quando o comprei!
O Hotel Arts tinha, nos quartos, aqueles fabulosos leitores verticais da BO, e passávamos a vida a ouvir sempre a mesma coisa...
O pianista era o Gerald Moore e foi, de facto, professor do Nuno.
E desculpem-nos esta "private conversation"...