Quem, quase escondido pela pilha de livros, revistas de cinema e arquitectura, jornais em diversas línguas e várias agendas de capa dura, me chamava a atenção de uma mesa distante, era o Professor Meireles, figura sui generis, sempre vestido com a sua gabardina encardida e gordurosa, um eterno fato preto, uma camisa branca no fio e uma gravata, através das nódoas da qual se podia adivinhar a ementa das últimas refeições do Professor.
Vagamente professor de História, esta presença habitual da ‘Estrela, vivia das explicações dessa disciplina, mas, também, de Geografia e Português que dava, a preços módicos, aos rapazes e raparigas do bairro.
Solteiro, apesar dos cinquenta anos já muito avançados, vivia em casa da mãe, uma velhinha viúva, e todo o dinheiro que lhe sobrava, da vida frugal que seguia, era para comprar livros, que procurava durante horas nos alfarrabistas do Chiado ou aos Sábados de manhã, na feira da Ladra.
A sua especialização, na verdade, eram as Teorias da Conspiração.
Quem o quisesse ver empolgado, durante horas, era falar-lhe no assassinato do Kennedy, de qualquer dos irmãos, do caso Dreyfus, ou do Rosewell, da ida à Lua, das armas maciças do Iraque ou até, mais recentemente, da Gripe A, do Freeport ou das ‘escutas’ presidenciais.
Em simultâneo, o Professor Meireles, como todos lhe chamamos, é uma enciclopédia viva.
Com algo de autista, desconfiança minha, consegue responder às perguntas mais díspares, como o ano em que foi publicado o Estrangeiro do Camus, recitar de cor a Tabacaria do Álvaro de Campos, enumerar os nomes de todos os álbuns dos Beatles ou dos vencedores do Festival da Eurovisão, enunciar os Bota d’Ouro dos últimos vinte anos, dizer quais os Ministros dos Governos provisórios e last but not the least o número de telefone de todo o mulherame das redondezas, o que até já tem dado jeito.
Sentei-me na sua mesa e encomendei uma sandes de carne assada, com uma folha de alface, acompanhada com um sumo de laranja natural. Ia ser o suficiente, depois do excelente e variado almoço.
A parcimónia da minha escolha fez-me ouvir ” O menino Nuno não tem idade para comer só isto” com que a maternal Dona Rosa me brindou, antes de me informar” a Rosinha deve estar mesmo a chegar…”
Dei uma dentada na sandes, tentando não fazer leituras acerca da razão de tal notícia.
A carne de excelente qualidade, como era habitual, desfazia-se na boca.
Entretanto, o Professor baixou o tom de voz, tapou a boca com uma das mãos e confidenciou-me, depois de uma olhadela furtiva a toda a volta.
“ O Nuno já ouviu falar que a Opus Dei quer fundir Portugal e Espanha num só país?”
Se, em outros dias, até alimento, pelo prazer da dialéctica e pelo agrado com que ouço a argumentação sempre inteligente do professor, as intermináveis discussões acerca dos mais variados temas, hoje a minha prioridade era outra.
Comer qualquer coisa rapidamente e enfiar-me em casa a ler o manuscrito, ou a cópia do mesmo, deitado no sofá da sala, tendo como música de fundo o Sungs from liquid days do Philip Glass que, por qualquer razão inexplicável, tem o condão de me transmitir uma tranquilidade total, que utilizo quando tenho que me concentrar mais profundamente.
À saída da ‘Estrela do Bairro’, antes que a Rosinha, o Telmo ou o Chico ’Acelera’ aparecessem e me atrasassem mais, cruzei-me com a Cristina ‘Foxy Lady’ que vira nessa manhã, naquele mesmo local.
Pela primeira vez, pareceu-me vislumbrar um sorriso e, ao mesmo tempo, um trejeito de desilusão.
Tenho que tirar isto a limpo, um dia destes…Mas hoje não.
Mal enfiei a chave á porta, o Leónidas veio-me receber.
Não sei se já contei como este felino egoísta, egocêntrico e mal agradecido, entrou na minha vida. E, mais grave do que isso, como é que nela permaneceu…
A Marta, com quem fui casado ( não percebo porque é que tenho que acrescentar esta explicação desnecessária, sempre que menciono o nome dela) tem a mania dos animais.
Um dos muitos aspectos em que os nossos gostos, taras e manias eram diametralmente opostos.
Alguns dos outros, com essa característica, eram a Literatura e o Cinema, a Música e a Política, a Religião e a Decoração, a Moda e o Consumismo.
Em comum tínhamos apenas as Viagens e a Gastronomia e, num capítulo à parte, o Sexo.
Bem, mas não divaguemos…
Enquanto vivemos juntos tínhamos um cão, um Golden Retriver, a que muito criativamente chamávamos o Gold, e um gato, o Leónidas.
Eu adorava o cachorro e tinha uma indiferença total pelo tareco, que aliás, me correspondia na mesma moeda.
Com a crueldade de que só as Mulheres conhecem o segredo, na separação, a Marta levou o Gold, ela aliás levou o ‘ouro’ em todos os sentidos, e deixou-me o felino, a que lentamente, muito lentamente, lá me fui habituando.
Ao entrar em casa, o Leónidas veio-se-me roçar pelas pernas.
Preparei-lhe a refeição com todas as mariquices gourmet que anunciam na televisão e mais umas quantas que a dona da petshop me impinge todas as semanas.
O ar feliz do bicho, o brilho e a sedosidade do pelo e a dureza das unhas, ou garras, conforme os dias, são provas de que a minha guarda não é tão ineficaz como a Marta certamente julgaria.
Depois de ter cumprido a minha principal tarefa doméstica, coloquei o CD no Changing Opinion e, sem mudar de opinião, encetei a leitura do manuscrito.
Agora, horas depois, quando o relógio digital marca as 4 horas e 14 minutos, arrumo a resma de folhas no sofá, estico os braços, e levanto-me, pela primeira vez.
É nesse exacto momento, que no silêncio da casa ( o CD há muito chegou ao final do Forgetting, mas eu não estive para me levantar e colocar outro) se faz ouvir o som algo estrídulo do telefone.
terça-feira, 19 de janeiro de 2010
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Excelente, como sempre, Galo !!
ResponderExcluir________________________________________________
Mas hoje está-me apetecer divagar e portanto toma lá...
Háuns anitos (1972) o exército inglês fex o que não devia... há testemunhos:
Sunday, Bloody Sunday ...
Para mim é horrível, porque eu sou anglófono desde a ponta dos cabelos até à ponta dos pés, mas amo os irlandeses, selvagens que eles sejam, um povo sofrido e com "tomates" para dar e vender.
E depois... Francis Bacon, Edmund Burke, William Congreve, Oliver Goldsmith, James Joyce, Frank O'Connor, John O'Keefe, George Bernard Shaw, Richard Brinsley Sheridan, and William Butler Yeats... só p'ra começar.
Não há nada como ter sentimentos divididos...
:-(
Montes de assuntos, deixar alguns p'ra outros...
ResponderExcluirSó fica isto, e em franciú:
L’adaptation cinématographique par Luchino Visconti :
De son vivant, Albert Camus a toujours refusé de voir porter à l’écran L’Étranger.
Après sa mort, sa veuve contacte le producteur Dino De Laurentiis, exigeant de choisir elle-même le scénariste et le réalisateur.
Son choix s’arrête finalement sur Luchino Visconti, après que Mauro Bolognini, Joseph Losey et Richard Brooks eurent été pressentis pour la mise en scène ; Marcello Mastroianni, libre suite à l'ajournement du tournage de Il viaggio di mastorna de Federico Fellini, incarne Meursault, alors que Jean-Paul Belmondo, puis Alain Delon, avaient été initialement choisis.
Mastroianni finance lui-même une partie du film.
L'Étranger a également inspiré en 1980 à Robert Smith, le leader et chanteur des The Cure, une chanson intitulée Killing an Arab.
Les frères Coen s'inspirèrent du livre pour écrire et réaliser The Barber : l'Homme qui n'était pas là.
L'Étranger est classé à la première place des 100 meilleurs livres du XXe siècle.
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Oui, c'est comme ça...
:-)
A.
E só porque me está a apetecer, e só por isso, aqui vos deixo o beautiful Kurt Cobain (RIP) , e mais o pesoal de Seattle, cantando Bowie.
ResponderExcluirAgora vou comentar sobre o teu texto, e isto vai-me sair do pêlo, mas o que tem que ser tem muita fôrça...
ResponderExcluir1. O texto é genial, todavia meu caro, difícil espetar lá com mais referências, diacho, andas a escrever p'ra intelectuais, ou deu-te uma travadinha ??
2. É uma pequena merda que aqueles gregos semi-belgas do 'Leonidas não tenham uma merdilheca dfe uma loja aqui, eu mataria algém a troco disso...
3. Adorei aquilo da gabardina encardida e gordurosa, também cheguei a ter uma dessas, comprada em Londres em 2ª mão...num 'jumble sale' marca "John Collier e wtf"...
Só me lembro de depois quando lá voltei, ir a 'Portobello Road' e comprar um casaco de "coiro" a uns ciganos semi-tugas que por ali estavam, por um sorriso e uma canção (depois do 'regateio' da ordem, se não regateias com os gajús não és homem, não és nada...)
Depois aconteceram "coisas estranhas" com essa 'gabardine' (género aquilo ficou a cheirar a gasolina) estávamos em 1972, o Zé Ribeiro Santos tinha acabado de ser morto a tiro em 'Económicas', merdas, resumo e finalmente a 'coisa' e o resto dos "coccktails molotov" --- que eram uma merda, aquilo explodia tanto quanto eu falo mandarim --- foi tudo p'ra um caixote do lixo ali p'rás banda do Príncipe Real...
A frioreira que eu rapei depois é o que me ficou mais na memória...
4. Pois, haveria um monte coisas mais para dixer, mas tenho a sensação que já estou a ocupar espaço demais... Lugar aos outros !
O professor Meireles, que ainda não tinha aparecido, está muitíssimo bem caracterizado!
ResponderExcluirConheço gente assim, e também um bocadinho autista...
Quanto à gabardine, encardida e cheia de nódoas, só pode ser inspirada na do velho Inspector "Colombo", da velhinha série televisiva...
"Com a crueldade de que só as Mulheres conhecem o segredo"...gostei!
O meu gato, que não se chama Leónidas, também me vem receber à porta, todos os dias...
Leónidas... entre o rei e os chocolates.
ResponderExcluir:-)
Os 300 de Esparta, a obra de Frank Miller (se não sabem quem é, façam o favor de ir descobrir, ou então suicidem-se já de seguida, ou qualquer coisa por aí...) que deu origem ao filme 300! com o sublime Gerry Butler, a espantosa Lena Headey e mais, uma plêiade de 'secundários' de encher o olho...
("viajante, vai dizer a esparta que nós morreremos aqui" --- em sendo que aqui é o desfiladeiro das Termópilas, Leónidas --- quer dixer 'leonino', um gajú que os tinha no sítio...)