A partir de hoje, e sem qualquer periodicidade, o Fernando Pinto, 'Amigo do Galo' há muitos anos, arquitecto de profissão e apaixonado( ..pela Vida, entenda-se!) por adopção, passará a enviar as suas 'Crónicas ao correr da pena'. Aqui está a primeira...
AS BURQAS QUE NOS ENFIAM
Quando há anos, no norte do Paquistão (em Peshawar), fui confrontado com o uso generalizado de burqas, esteticamente, não gostei do que vi.
Em particular, chocaram-me as burqas que encerram toda a mulher, incluídos os olhos, dentro de uma redoma opaca, que funciona como um fragmento ambulante da sua própria casa.
As ruas tornam-se estranhas procissões de drapejantes vultos, que se esgueiram de uma porta para outra, de uma loja para o interior de um automóvel, em pequeníssimos bandos de curtíssimos percursos.
Também se vêm duos ou trios carregando crianças, diligente e respeitosamente atrás de um homem, trajando “ocidental” ou igualmente enroupado e de turbante, mas de cara descoberta.
Deduz-se que serão as esposas (e os filhos) do todo-poderoso homem que as precede e conduz.
É um mundo desconfortável, de caras barbadas ou “não-caras” num oceano de panos, pálidas bandeiras esvoaçantes que rumorejam ao sabor do vento.
Eticamente, também não posso ser partidário de um traje que, em nome de uma prática religiosa, limita os movimentos, dificulta a vida e, sobretudo, estigmatiza a mulher como algo de que um homem se pode apropriar.
A partir desse momento (a puberdade), a imagem da mulher desaparecerá do Mundo e só existirá para e em função do seu “proprietário”.
Todo o panorama é indício de uma sociedade desigual, moldada em princípios que não são os nossos mas dos quais não estamos tão distantes quanto gostaríamos de estar.
Para tanto, basta lembrarmo-nos (os que têm mais de cinquenta anos e memórias de há quarenta) das aldeias da nossa infância, em que as mulheres andavam no seu dia-a-dia e iam para as igrejas enroupadas e veladas em preto, num luto que ia desde a morte dos entes mais queridos até ao fim das suas vidas.
As freiras de hoje em dia são talvez as últimas representantes (e, mesmo assim, muito mais “leves” no seu trajar) do que então era a imagem corrente da mulher portuguesa (e italiana, e grega, e…), sobretudo do meio rural.
Não imagino o que então aconteceria se então uma lei as tivesse proibido de andar assim trajadas, ou de serem obrigadas a entrar numa igreja sem véu.
Ou, pelo contrário, num acesso igualitário, um qualquer governo promulgasse que, a exemplo das cotas para deputados, o número de padres e restante hierarquia religiosa deveria ser ocupado em pelo menos 30% por mulheres.
Recordo que a revolta da Maria da Fonte, que acendeu todo o norte do país e fez cair governos, começou com a hoje óbvia proibição dos enterramentos dentro das igrejas.
Tantos outros exemplos poderiam ser dados do que é a força da mobilização popular face a coisas aparentemente pouco significativas, e que não lesam os outros.
É por isso que não compreendo a decisão do governo francês de proibir o uso da burqa e do niqab às mulheres islâmicas residentes em França, quando andarem nos transportes públicos ou se dirigirem aos serviços da administração pública.
Se bem que se diga que tal medida é tendente a aumentar a segurança pública francesa, porque debaixo de uma burqa se pode esconder um (ou uma) terrorista, a verdade é que não me recordo, até hoje, de qualquer atentado islâmico levado a cabo na Europa cometidos por mulheres.
Mesmo em atentados cometidos por mulheres em outros pontos do Mundo, não recordo que alguma vez tenha sido citada uma burqa como disfarce.
E de que é que adiantaria uma burqa, se a maioria dos atentados é suicida?
Não vejo, portanto, mais que uma medida prepotente de afirmação nacionalista que irá exacerbar os fundamentalismos islâmico e cristão, criando mais fracturas que consensos e promovendo a discórdia.
E logo no país que, em 1968, apregoou ao Mundo o célebre “É proibido proibir!”
Mais, Nicolas Sarkozy, presidente da França e filho de emigrantes, tem repetido que o uso daquele traje islâmico que cobre todo o corpo e rosto das mulheres “não é bem-vindo” em França.
Aparentemente, é uma frase que poderá ser interpretada como “aquele traje e tudo o que com ele é relacionado”.
Haverá seguramente quem a queira interpretar assim.
Entendo, por exemplo, que Osama Bin Laden tem, a partir de agora, e por muito demagógicos que possam ser, mais argumentos para seduzir descontentes.
Penso que a burqa é um meio de submissão da mulher ao homem, à luz de uma leitura do Corão que nem sequer é universalmente aceite.
Acho contudo que não é assim que essa submissão se combate.
O combate de ideias faz-se através da discussão dessas ideias e não através da imposição da lei pelo mais forte.
Precisamente por isso, critico também a obrigatoriedade de utilização do shador pelas mulheres ocidentais que visitam alguns dos países de maioria islâmica.
Creio que a razão se perde quando se legisla da mesma forma, porque se assemelha a desforra ou retaliação.
Extremam-se posições e criam-se zonas de fractura que só beneficiam quem pretende dividir para reinar.
Ao proibir-se o uso da burqa em França, embora (ainda) só nalguns locais, somos todos nós que a estamos a enfiar, e não as mulheres islâmicas que estão a ser forçadas a tirá-la.
Oxalá (o Insh´Allah que tomámos emprestado do Islão e que quer dizer “Queira Deus”) eu me engane.
Fernando Pinto
sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
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Muito BEM Fernando.
ResponderExcluirConhecendo razoávelmente um País onde impera a religião muçulmana, estou quase totalmente de acordo com a opinião de FP sobre a burqa e totalmente de acordo quanto ao que diz sobre a decisão francesa.
ResponderExcluirO quase resulta do facto de que não existe em alguns daqueles países, uma igualdade de tratamento tal como defendem os muçulmanos tão bem acolhidos em França.
Não podemos entrar numa Mesquita, eles podem entrar em qualquer Templo no Ocidente, não devemos fotografar em determinada situações, no Ocidente vivem em total liberdade e por aí fora.
Não me alargarei mas seria bom que a bem da Paz entre os Homens, existisse mais igualdade de tratamento entre as parte.
Bem vindo FP, a "inauguração" foi excelente !!!
Bem-vindo aqui, Fernando!
ResponderExcluirTens toda a razão.
Somos todos nós que estamos a enfiar a burqa!