quinta-feira, 19 de março de 2009

Maria rapaz de Collants


Assim que o pai passava
para a garagem,
no fundo do quintal,
lá ia ela, silenciosa,
no seu encalço.
Era chegado o momento
de observar atentamente
as experiências mecânicas
que ali tomavam forma.
O pai não fazia daquilo profissão – longe disso – mas a verdade é que tinha uma habilidade recheada de imaginação ao ponto de transformar uma máquina de lavar num motor para a piscina ou uma esferográfica numa antena de televisão.
Também os carros lá de casa eram cenário destas invenções.
Era raro ser necessário levar qualquer um deles à oficina.
O pai encarregava-se de detectar as falhas e, cioso do seu instinto inventivo, colmatava-as ou dava-lhes outra forma.
Daí que não fosse invulgar a mãe ser obrigada a usar a manette do volante não para limpar o pára-brisas mas para ligar a chauffage cujo botão se havia partido e por aí fora.
Esta escola caseira veio a dar-lhe, também a ela, algum instinto mecânico que teve oportunidade de testar quando, aos 16 anos recebeu de presente metade de um Mini.
A outra metade pertencia à sua irmã que tinha acabado de tirar a carta, pelo que se revelara sensata a opção de esta última ter ficado com a metade que tinha volante.
Olhava-se para o carro e as diferenças saltavam à vista.
Do lado canhoto havia rebuçados para oferecer às boleias; havia autocolantes de marcas de pranchas de surf e havia, sobretudo, um brio feminino, daquele indizível, mas que lá está,
nos mais pequenos detalhes.
Já do seu lado eram visíveis as invenções de novos puxadores de porta inquebráveis (que nos Minis se partiam num ápice!), os manómetros a fingir pousados no tablier oco do seu lado e as incontáveis ferramentas despejadas pelos cantos cuja única função era conferir a cada viagem uma banda sonora de tilintes, à falta de telefonia à altura.
Quando aos 20 anos começou a trabalhar num atelier muita coisa mudou na sua vida.
Os fins de tarde não eram mais passados a jogar a bola contra a parede da casa e a biciclete ficou encostada na garagem
por largo tempo.
As únicas lembranças desses momentos viviam sob a forma de vagas nódoas negras nas canelas, agora cobertas por collants, por insistência da mãe que achava apropriado uma jovem vestir-se formalmente no emprego.
O desconforto, claro, era muito. Os sapatos rasos mas decotados, o tailleur curto e justo, tudo aquilo lhe dava uma desconfortável sensação de impotência.
E foi isso que sentiu, um fim de tarde, no Prior Velho, por entre barracões e armazéns inóspitos, quando o seu fiel Mini desatou a reclamar fumo pelo capot.
Rapidamente se apercebeu que tinha, além de uma dezena de olhos gulosos a observá-la, a correia de ventoinha rebentada.
Por um momento, que roçou uma eternidade, ela sentiu-se como peixe ferido num mar de tubarões.
Os ociosos homenzinhos, que zombavam entre bigodes farfalhudos, avolumavam-se em seu redor, a uma distância suficientemente próxima para observarem com deleite o seu tormento mas simultaneamente distantes para não serem chamados
a prestar auxílio.
Afinal era muito mais divertido deixá-la a penar atrás daquele capot.
Daí que quando a viram em esgares físicos, lutando com os collants, se tenham convencido ainda mais do gozo que aquilo viria a dar e atreveram-se nas primeiras sonoras gargalhadas.
Ela lá continuava – mexendo e remexendo no motor.
Minutos depois, fecha o capot. Os olhos espantam-se.
Confiante, entra no carro, roda a chave e põe-se a andar dali, deixando para trás os mesmos dez olhos, incrédulos, perante a ausência de fumo ou outro qualquer sintoma de anomalia mecânica.
Lá dentro, já rolando pela estrada, ela ria. Ria de glória.
Só não sabia como agradecer à mãe a insistência nos collants; afinal de contas, se não os tivesse despido e feito deles uma improvável correia de ventoinha, não estaria agora,
vencedora, a caminho de casa.

Dear Prudence

12 comentários:

  1. Ora aqui está uma história. Parabéns Dear Prudence!

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  2. Inteiramente de acordo com a Quimera.Um conto com princípio,meio e fim, o que nem sempre acontece...Muito bem!

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  3. Adorei! Boa estrutura! Boa história!

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  4. Dear Prudence,
    Tive três Minis e inúmeras histórias...
    Uma vez, 10 horas para chegar ao Algarve...
    A sua, uma história muitíssimo bem contada.
    Muitos parabéns!

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  5. Dear,um conto de se lhe tirar o chapéu.
    O Galo está cheio de sorte com tantas e tão boas participações. E nós também !

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  6. Excelente pseudónimo num conto bem contado!

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  7. Eu soube,desde o princípio, que o galo ia ser um caso muito sério no mundo dos blogs e as iniciativas, associadas à evidente qualidade, são bem prova disso.

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  8. Um dia destes, lembrem-nos de contar-vos uma história de nós dois dentro dum Mini com mais dez mecânicos...meninos, até veio no Guiness!!!

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  9. Mini não, mas carochas dava para fazer um filme XXX.

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  10. Humor com acção e um final que dá para soltar uma boa gargalhada. Vamos lá ver se conseguimos manter este nível...

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  11. Lindo conto. De fácil leitura e bem estruturado. Com princípio, meio e fim. Gostei do final que nos permite um sorriso nos lábios. Parabéns "Dear Prudence" e ao "Galo" pela iniciativa - aposta ganha.

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