segunda-feira, 30 de março de 2009

A Paisagem da Vizinha

O caminho da arte é sempre duro,
sinuoso e, por vezes, inútil.
Mas uma vez percorrido, é ver ali
uma auto-estrada de oportunistas,
buscando dividendos
e apregoando mecenatos.

Paisagem: do francês Paysage.
Extensão de território que se abrange num só lance de vista;
panorama; vista;
espaço geográfico com determinadas características.

"...Já morei em vários locais, sempre na mesma cidade.
Também passei infâncias e adolescências em casas de férias,
de avós ou, mais recentemente, minha.
Em qualquer uma delas, habituei-me a olhar pela janela
e chamar ao que via paisagem.
Pode ser um risco essa decisão, vim a perceber mais tarde,
quando confrontei o conceito geográfico de paisagem
com aquele retrato ambíguo,
emoldurado pela janela do meu quarto.
É que a definição sugere uma certa, se não harmonia,
pelo menos unidade; refere “determinadas características”
que, tomadas de levezinho podem, de facto, ser quaisquer umas.
Mas se formos mais puristas não é estranho concluirmos
que essas características deverão ser definidoras
de uma certa matriz, envolvendo objectos, floras, arquitecturas,
aparentadas entre si, como uma família.
Os conceitos são apreendidos, com frequência
mais intuitivamente que racionalmente.
Os novos conceitos surgem-nos muitas vezes
por explicações objectivas, concretas: mobbing, microcrédito,
deflacção, sustentável.
Estes são recentes; chegam pelo noticiário da noite,
geralmente explicados por um trio de peritos que debitam
umas frases-bomba e que passam depois em rodapé,
com direito a parangonas.
Já os conceitos que assimilámos de forma intuitiva raramente
nos foram explicados – e quase nunca os pomos em dúvida.
Não me recordo de ter perguntado o que era a Felicidade,
ou de ouvir nos bancos da escola a noção de Pobreza.
E também assim foi com Paisagem. Entranhou-se e pronto.
Não admira, pois, que a Paisagem tenha sido um elemento
tão preponderante no trajecto das Belas Artes
– principalmente na Pintura, Literatura
e, mais recentemente, na Arquitectura.
A sua indubitabilidade recheada de encanto, ora bucólico,
ora urbano, tem sido ponto de partida
– e por vezes também de chegada – no percurso de artistas,
que pela pena ou pelo pincel, tentam captá-la,
dominá-la, homenageá-la.
Não raras vezes saí de casa, de caneta em riste e bloco à bandoleira,
procurando paisagens à espera de serem desenhadas.


Algumas estão ali mesmo, em pose. São inequívocas. Ostentam todos os pequenos galardões próprios ao título: o riacho serpenteante, as montanhas em fundo, com sorte a casinha de pedra, rústica como se quer; outras são menos óbvias. Haveria que ter um olho clínico mais treinado para as [des]encantar. Normalmente urbanas, fecham-nos os horizontes e enchem-nos de preconceitos. Pode o Cacém ser um manancial de recantos desenháveis? Sempre gostaria de saber que tem Alfama a mais – ou a menos - que origina aquela nascente de portfolio dos artistas da Rua Augusta…
Estará a nossa cultura visual contagiada pelo preconceito social, ao ponto de nos toldar o discernimento na hora de escolher o desenhável? Pode esse preconceito estender-se a todas as artes, procurando o feio apenas para cenário de dramas e o bucólico para desenlaces felizes? A realidade imita a ficção, diz-se. E a arte imita a vida. Esta pescadinha de rabo na boca assume-se, portanto, perigosamente convincente e os telejornais têm-lhe dado razão.
Se assim for – e pela minha própria experiência diria que sim – importaria saber o que leva o artista a seguir convenções pseudo-sociais em detrimento de seguir o instinto observador que, em princípio lhe dá razão, e em fim lhe trará alento. O caminho da arte é sempre duro, sinuoso e, por vezes, inútil. Mas uma vez percorrido, é ver ali uma auto-estrada de oportunistas, buscando dividendos e apregoando mecenatos.














Eu não aspiro a ser artista. Tenho mais com que me preocupar, como a Paz no mundo, o tal Ferrari amarelo e, sobretudo, emoldurar na janela do meu quarto a paisagem da vizinha que será, seguramente, muito melhor que a minha."

Moira de Trabalho

13 comentários:

  1. Sou apaixonado pelos textos e desenhos da Moira desde o primeiro minuto mas não acho que esteja a ser muito Moira de Trabalho porque, estou certo, todos nós gostariamos de ver muito mais coisas suas.

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  2. A Moira deve ser muito nova mas Paz no Mundo não liga com Ferraris...

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  3. MTH... Já não sou assim tão nova.
    Aliás, já perdi a ingenuidade de achar que vou conseguir alguma dessas duas coisas.
    A primeira, porque não consigo;
    A segunda, porque não quero.
    A Figura Sem Estilo emprega, afinal, muitas "Com"; esta chama-se ironia, como sabe.

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  4. Só quando se é nova, se diz "...já não sou assim tão nova".
    Moira, eu também faço parte da sua galera, sou fã de carteirinha.

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  5. Sapho, você fez-me lembrar de um filme dos primórdios do Woody Alen [Nem Guerra Nem Paz, título em Portugal; Love and Death, no original - 1975].
    O nosso improvável herói, quando confrontado com a pergunta tão retória quanto provocatória: "É você o jovem cobarde de quem tanto se fala?",responde, humildemente: "Bom, já não sou assim tão jovem..."

    E como vê, para me lembrar deste filme devo ter no mínimo uns...

    - assinale a opção correcta:
    a) [ ] 20 e tais
    b) [ ] 30 e tais
    c) [ ] 40 e tais
    d) [ ] 50 e tais

    Se você acertar dou-lhe de presente um desenho autografado. Mas não dou a solução aqui no Galo, não.
    Ah! E muito obrigada pela "fãzice"!

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  6. 50 e tais
    Impossivel,meu bem.

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  7. Amanhã venha buscar o seu desenho autografado.
    Acertou... em uma delas.
    E mais não digo, aqui no Galo ; P

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  8. Margarida Ferreira dos Santos31 de março de 2009 às 21:28

    Pois Moira, acho que deve andar pelos 30 e tais...dá direito a desenho? Pode até nem ser autografado :)

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  9. Também voto nos "trintas"...
    Também posso ter um???!!!
    Pode ser à sua escolha...

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  10. Pronto, pronto...
    Panfletos, quero dizer, desenhos lançados dos céus, num teco-teco, hoje pela tarde.
    Pode ser?
    Ah! E assinados a lápis para não perderem valor daqui por uns anos, ok? ;P
    E obrigada a todas pelo interesse.

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