sexta-feira, 20 de março de 2009

A Peregrina e o Guardião


No primeiro dia, ela chegou sem que ele tivesse percebido o seu aproximar. Do alto da sua torre de vigia, espantado com aquela aparição, perguntou-lhe: – Quem és tu?! – Ela ergueu o olhar e respondeu com uma voz rouca: – Eu? Uma peregrina! E sobre o meu nome tenho uma flor. E tu, quem és? – Desconfiado, fechou os dedos no punho da espada e apertou o escudo contra a armadura que lhe protegia o peito. – Chamam-me guerreiro glorioso e sobre o meu nome tenho uma tocha! – Respondeu, fitando-a.
– Desce da tua muralha – disse-lhe a desconhecida. Mas ele declinou o convite, permanecendo no seu posto, curioso mas firme. E ficou a vê-la dançar, rodopiando ao vento, acompanhada por um pequeno duende. E dançando, embrenhou-se na floresta de Sombras e de Sonhos, no meio da qual se erguia Core, o castelo que ele guardava diligentemente. Ela tinha ido, mas a sua voz rouca ainda ecoava na cabeça do Sentinela.
No segundo dia, ela regressou consigo trazendo a Aurora. Vinha pelo mesmo caminho do dia anterior e ele viu-a chegar.
– Desce da tua muralha – voltou ela a convidar. Ele anuiu ao pedido e, a medo, entreabriu a porta do castelo.
Via-lhe os olhos pela primeira vez. Castanhos. Bonitos. Um olhar profundo que lhe tragou o seu, para nunca mais o devolver. Mesmerizado, ouviu-a contar uma história que falava de um príncipe, de uma Rosa e de campos de trigo
– Sai. Vem cá para fora! – Pediu-lhe. Mas ele não o fez. E ficou a vê-la afastar-se, fixo nos seus cabelos longos e escuros, como escuro era o Ocaso e longa a noite que lhe sucedia.
Ao terceiro dia, ele aguardava-a à porta. Ela chegou com um sorriso, trazendo consigo um tabuleiro de xadrez. Sentou-se e disse: – Vem cá para fora. Vem jogar uma partida comigo!
Olhando para um lado e para o outro, avançou com passos receosos e sentou-se junto dela.
– Quem és tu, Peregrina, enviada por Deus? – Perguntou incrédulo.
– As peças brancas são tuas! – Respondeu ela com um piscar de olho e iniciaram o jogo – Xeque! – Disse ela, decorrido algum tempo.
Ele levantou-se num sobressalto. Não tinha conseguido antecipar aquela jogada. Ela levantou-se calmamente, levantou o braço, dirigindo-o a sua mão na direcção do peito dele e tocou-lhe na armadura. E não evitou aquele gesto. Desarmado, ficou a vê-la passear os dedos por marcas antigas, como se lhe estivesse a ler sina e a interpretar-lhes cada uma daquelas linhas da Vida. Foi invadido por uma torrente de sensações que não conseguia, nem queria controlar. Conduziu-a ao interior do castelo, até uma sala onde se lia no umbral: Anima, e aí, permitiu que ela lhe retirasse a couraça. ­
– Vem comigo – desafiou-o uma vez mais e uma vez mais ele recusou.
Duelo entre Razão e Emoção. Ele era o Sentinela; o Guardião daquela fortaleza que o protegia e que dependia dele para ser protegida.
Ela voltou-se e partiu, levando consigo mágoa no coração. Tinha em si o fogo da Paixão. Ele, preso às correntes da Razão, ficou na sala, guardando-a consigo, sentindo-se perdido e só. - Mate! – murmurou ele em voz baixa.
Na manhã seguinte, aguardou-a fora da porta do castelo, mas ela não apareceu. E assim sucedeu nas longas horas daquele dia. Caiu a noite e com ela findava-se a esperança de a voltar a ver. O céu era um tecto plúmbeo que se abatia sobre si. O vento agitava com violência a copa das árvores e a chuva caía impiedosa, cobrindo o chão com um rio de lágrimas. Subitamente, num impulso louco, cortou as correntes que o prendiam. Já não conseguia racionalizar o irracional. O Sentinela, já não o era. Era agora um peregrino a caminho por entre a tempestade, movido pela fé, em demanda de um Amor que já não conseguia negar.
Encontrou-a. Estava, afinal tão perto e, ainda assim, tão longe. (Espero não ter chegado tarde demais – pensou). – Cheguei demasiado tarde? – Perguntou-lhe, por fim, com voz trémula. E aquela pergunta ficou suspensa no ar, presa entre o olhar de ambos, pairando no espaço que os separava de um beijo.
E naquele beijo perceberam que o caminho de ambos começava naquele instante.

James Starfield

9 comentários:

  1. Este Micro já nem sei em que género o devo catalogar mas de uma coisa estou certo - é bem interessante e prende-nos do princípio ao fim.
    O que apreciei menos foi o happy end, mas talvez seja eu que esteja a deixar de ser romântico...

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  2. Serei tudo menos parcial neste comentário, provavelmente... Conheço o autor. Conheço a história.

    Quando a li a primeira vez, não consegui dizer nada. Só senti. Depois disso já a li outras vezes. E continuo sem palavras. Só sinto.

    Percebo o que diz o Pedro Miguel P. Também às vezes me faz mais sentido um final triste ou um final suspenso. Mas penso que não é por falta de romantismo, é porque o que não está acabado nos permite agir... E acho que quando leio um livro ou vejo um filme que não tem um happy end, posso continuar a imaginar a sua continuação... O livro ou o filme que me prenderam por alguns momentos não acabou ali no happy end, mas pode continuar na minha cabeça.

    Sobre esta história, e a propósito do que me disse uma amiga, deixo um excerto de um poema da Olga Mariano, presidente da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas (AMUCIP):

    "... foi no meio da vida que encontrei uma passagem..."

    E fico à espera de mais Micros do James Starfield...

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  3. Um lapso no comentário anterior...

    Obviamente que queria dizer que serei tudo menos IMparcial...

    ;)

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  4. Amei de mais.Agora é só fazer o filme com o Brad Pitt e a Jolie...

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  5. Realmente este conto com algum desenvolvimento dava um filme do género de um que vi há alguns anos com a Michelle Pfeiffer e o Rutge Hauer(não sei se se escreve assim) em que ele era um guerreiro que se transformava em lobo e ela uma princesa que se transformava em falcão e só conseguiam conjugar a forma humana em simultâneo ao pôr do sol.Parabéns ao autor.

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  6. O filme a que se refere tem o título original de Lady Hawke e em Portugal chamou-se A Mulher Falcão.
    O realizador é Richard Donner e os protagonistas, como o Adriano muito bem disse,
    Michelle Pfeiffer e Rutger Hauer,
    o inesquecível andróide de Blade Runner,
    para além do, então jovem, Mattew Broderick. Estava-se no ano de 1985.

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  7. Lindo. Adorei o conto e a mensagem de que por vezes ao deixarmo-nos levar por outros sentimentos que não só a voz da razão nos pode transformar e fazer-nos deambular entre sentimentos.

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  8. A lembrar o mundo do jardim mágico de Monte Salvat, no Parsifal...

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  9. Tenho seguido os vossos comentários. E não podia deixar de agradecer as palavras que o meu conto vos motivou.
    A impossibilidade de o catalogar. E não pretendo que o façam. Prefiro que o sintam. E dificilmente se cataloga aquilo que se sente.
    A comparação com a bela e trágica história de Etienne Navarre e Isabeu Danjou. Cujo amor, amaldiçoado, era vivido num pequeno relance ao amanhecer.
    A invocação da melhor das personificações do cavaleiro peregrino. Quantos de nós, não perdemos o "Graal" por não conseguir formular a pergunta certa no momento certo?
    Felizes aqueles que encontram o seu caminho e que nele se encontram a si mesmos.
    E não resisto a citar o andróide Roy no final da sua angustiante demanda, em busca de si e da sua Humanidade: "All those moments will be lost in time... like tears in rain... Time to die..."

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