sexta-feira, 10 de abril de 2009

Adeus até o meu Regresso

Enquanto ajeitava o quico, ligeiramente inclinado
e com a pala a sombrear-lhe os olhos, foi-se lembrando
de como tinham sido aqueles dois últimos anos.
O embarque em Santos, numa manhã ensolarada de Agosto.
Os avôs, recém chegados da província, a substituírem os pais,
desaparecidos quando ele era ainda miúdo
A avó de lenço à cabeça, abraçada a ele
” Ai, o meu rico menino, ai, o meu rico menino”.
O avô, de face granítica, a tentar engolir em seco as lágrimas
que levavam a melhor.
O barco enorme a afastar-se. O camarote dividido com três colegas,
camaradas, “porque colegas são as p…”.
Mar a perder de vista durante dias.
Luanda, a euforia de conhecer os bares da cidade.
Lourenço Marques. Beira. Nacala. E, por fim, Porto Amélia.
O bafo quente africano. A coluna até ao aquartelamento em Mueda.
As instalações exíguas, e ele era miliciano.
As dos soldados, para esquecer.
O conhecer os outros oficiais.
O comandante Barros, racista e reaccionário, capitão lateiro,
ex-sargento da manutenção, onde ganhara muito dinheiro,
segundo as más línguas.
Os alferes Santos e Rodrigues, que se tornariam bom amigos.
E depois a primeira missão.
Dois soldados mortos mesmo ao seu lado.
A evacuação dos feridos de helicóptero para Nampula.
Para o hospital, onde um deles, o cabo Nelson,
viu ser-lhe amputada uma perna. Desse nunca mais ouviu falar.
Foi desmobilizado e voou para a Metrópole.
A grande bebedeira, com cerveja Manica misturada
com a aguardente de zimbro, que o Santos recebia periodicamente.
A ida até à manchaba. Os olhos de espanto da jovem Fátima.
O riso rasgado transformado em esgar de medo.
O possuí-la quase à força. O desfalecimento.
O experimentar da erva, fácil de arranjar entre os furriéis.
Sentir-se a voar para longe daquele calor peganhento.
Dos mosquitos. Dos tiros. Do rebentar das minas.
Dos gritos de dor. Dos mortos. Dos pesadelos..
O prazer ao receber os aerogramas amarelos
da madrinha de guerra. A Alice, Cinha como ele lhe chamava.
Os planos a dois. O receber a ordem de marcha.
Voava amanhã para LM e de lá para Lisboa.
Não cabia em si de contente. Disse adeus aos amigos.
E o comandante.
“Parabéns Silva, para despedida leve quatro homens
e faça o último abastecimento de água.
E, mais uma vez, parabéns, desta já se safou…”
A viatura cisterna. Dois batedores à frente. Outros dois atrás.
Soprava um brisa morna. O sol encandeava.
Quis pisar, uma última vez a picada.
Caminhou à frente dos soldados…

O clique do armadilhar da mina apanhou-o desprevenido.
A explosão foi logo a seguir.
Ficou espalhado, em mil pedaços, por terras africanas.

7 comentários:

  1. Bela história de guerra. Embora custe juntar bela e guerra.Mas quando se consegue transmitir a solidariedade entre camaradas é assim mesmo.

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  2. Forte mas bem escrito.

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  3. Uma história, infelizmente, real para muitos.

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  4. Só consigo dizer - Lindíssimo.

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  5. A conseguir transmitir a emoção que as histórias que o Pai, que esteve em Angola, nos contava quando eramos pequenos.
    Gostei imenso.

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  6. Um dos bons textos com que o Galo nos presenteia, de vez em quando,a mostrar toda a estupidez e perda de vidas jovens que foi a Guerra Colonial.

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  7. Nada sei da guerra de África mas alguns amigos já me contaram que foi uma coisa terrível. Gostei do clima e roteiro.

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