segunda-feira, 20 de abril de 2009

Desencontros

Inácio, o negro, forte de estatura física e moral.
Sessenta anos de vida, cinquenta a trabalhar na cidade, a mesma casa, os mesmos patrões.
Leal e dedicado, incondicional para os que serviu durante anos e o foram moldando como urbano.
Saudoso das suas raízes que se iam esfumando, mas sem vacilar um dia que fosse.
O seu maior desejo sempre fora voltar à terra e aos seus, voltar para sentir o cheiro das queimadas e a brisa nas margens do rio. Mas “desconseguiu”, não quis a vida que isso acontecesse.
Tinha esse nó que não conseguia desatar e o sonho que ainda acalentava.

Luísa tinha a vida que queria, sempre teve.
Nem feia, nem bonita, mas havia dias que tinha graça.
Em pequena cantava tudo e fazia as delícias da família e vizinhança.
Não continuou por aí, casou, teve filhos, levou a vida que tinha planeado.
Não era feliz, mas também não sabia bem o que isso era e se era isso que queria.
Não gostava de recordações e costumava dizer que decepava qualquer pensamento “descómodo” que teimasse em lhe aparecer.
Dizia-o com graça, com convicção, como que encerrando o assunto.
Era a sua maneira de esperar a vida, agora que tinha dobrado os quarenta.

Para Ana, “ousar lutar, ousar vencer” era o mote revolucionário, era a chamada.
Foi depois o seu lema e de muitos de uma geração, militante ou não, que o tomaram como filosofia de vida.
Hoje, passados os sonhos, esbatidas as memórias, frustradas as expectativas, Ana, e talvez tantos outros, já não quer mais que “desousar”, abafando medos e cobardias.
Os seus quase cinquenta anos não lhe retiraram nem a vivacidade nem a perspicácia que sempre lhe foram reconhecidas.
Pelo contrário, uma maior lucidez estava agora sempre presente, obrigando-a a conviver com angústias e contradições.

Salomé tinha acabado de descrever as suas três testemunhas.
O seu colega de escritório respirava agora de alívio, não pelo que tinha acabado de ouvir mas porque finalmente tinha terminado.
Talvez se tivesse alongado, talvez tivesse dado detalhes que não vinham ao caso, pois talvez…
Mas Salomé continuava a pensar nas suas testemunhas.
Amava-as, faziam parte de si, sabia que, com elas, podia contar incondicionalmente.
Como ela, que “desbordava” casamentos, também eles tinham desencontros com a vida que as palavras comuns não conseguiam ilustrar.

Quin

5 comentários:

  1. Os contos não têm todos que ter uma conclusão moral ou inesperada.Acho eu, que não percebo nada disso nem nunca escrevi um conto .

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  2. Penso que estas personagens merecem que não as matem já...porque é que não temos sequela ?

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  3. microconto, remember?
    personagens apresentadas, e muito bem, esboço de narrativa, há muito que acabou a ditadura da estrutura clássica, se não erro.
    querem mais, querem outro, cheguem-se à frente... :-P

    parabéns, Quin.

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  4. É um conto. Eu vi aqui um conto.E gostei. Costumo gostar da(o) Quin.

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