segunda-feira, 27 de abril de 2009

A Dor

Ouviu um zumbido que parecia crescer até se tornar um grito agudo que a fez saltar na cama.
- Merda! Cala-te estúpido! – a mão procurou o despertador.
As pernas embrulharam-se nos lençóis.
Sem saber como encontrou-se de pé, no tapete do quarto, em completo desequilíbrio, caindo devagar para a borda da janela.
A custo aguentou-se mas bateu com os dedos do pé esquerdo na cadeira do toucador…
- Gaita que isto dói! Gaita! Gaita! Gaita! O estupor do dia começa bem e eu começo com uma disposição a prometer maravilhas.
Mas afinal o dia não se começou mal.
Banho, pequeno-almoço a correr, viagem de carro até à faculdade sem problemas.
Trânsito fluido, música simpática.
Aulas da manhã com alunos atentos e interessados, e em silêncio…
Ligou o computador e viu os mails que palpitavam no ecrã.
- Bom vamos lá ver o que teremos de tratar na reunião – disse para consigo.
E foi então que, vinda de algures, nem ela sabia donde, surgiu aquela desagradável dorzinha no quarto dedo do pé esquerdo.
Primeiro não ligou, era como se nada se tivesse acontecido.
Como se algo se tivesse passado num nível de subconsciência, mesmo de inconsciência.
Depois, parou por milésimas de segundo a sentir aquela desagradável impressão no dedo de pé. Mas foi algo fugaz, como um raio que brilha e desaparece no momento.
Voltou a dor, mais nítida, mais definida, já uma dor, com espaço a ocupar, com intensidade a sentir, com peso a marcar presença.
Uma dor que a fez interromper o que estava a ler “- Isto dói! Porque será?”
E voltou ao documento.
Não gostou a dor de ser assim abandonada e regressou, ainda mais decidida a não se deixar ultrapassar por um qualquer regulamento universitário.
E Maria Clara tornou a parar a leitura para descalçar o sapato e tocar o dedo do pé,
- Soltou um grito, quando a sua mão apertou a zona magoada
- “Ui!!! Safa que isto dói” – exclamou
Depois, com mais cuidado, voltou a tocar no dedo.
A dor aumentou ainda que agora mais leve
-“Foi aquele pontapé na cadeira – murmurou – Que estupidez.
Voltou à leitura do documento enquanto acariciava o dedo magoado
E perdeu-se na leitura, e continuou a esfregar o dedo do pé.
E continuou a ler documentos … mas a dor no dedo do pé persistiu,
digamos mesmo que aumentou, que se foi tornando omnipresente,
avassaladora, ocupou todo o espaço sensorial de Maria Clara,
dominou a racionalidade.
Quando a reunião começou Maria Clara estava completamente entregue à dor.
O pensamento centrava-se na dor, a racionalidade centrava-se na dor, a sensualidade centrava-se na dor.
Músculos, nervos, ossos, sangue, coração, pulmões, olhos, ouvidos, nariz, língua, tudo palpava a dor, procurava compreende-la, recusa-la, aceita-la, para a eliminar…
Mas a dor mantinha-se na sua pequenez imensa, na sua dimensão exclusivamente física, incomoda, desagradável, chata, mas não mais do que isso.
A dor mantinha-se dor, apenas dor, sem qualquer pretensão
E Maria Clara não ouviu o que se disse, aprovou o que nunca aprovaria, concordou com o que discordava e não viu os olhares apaixonados daquele seu jovem colega que sempre a incomodavam.
Naquela reunião a dor foi rainha e rainha absolutista.

Contos do Feeling Estranho

13 comentários:

  1. Eu que ando, há já 3 dias, com uma dor insuportável no ouvido, apreciei duplamente este Conto.
    O Feeling Estranho merece o Prémio Ecletismo porque tem muitas formas diferentes de escrever, o que não sei se é bom ou mau, mas de que eu gosto.

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  2. Sei que andam pessoas a espetar agulhas em bonecas de pano que representam a MTH.Se calhar alguma acertou no ouvido.
    Agora, a sério, as rápidas melhoras . E não será melhor ir ao médico?
    Quanto ao conto, é interessante como se pode escrever a respeito de coisa nenhuma e conseguir fazer um texto diferente.

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  3. E eu que estava à espera de um final inesperado, por ele não existir acabou por ser inesperado. Foi dos que gostei mais até agora do FE.

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  4. Agora tenho andado preguiçoso para a escrita,mas hoje vou recomeçar porque tenho três dias de papo para o ar.
    Também é dos que gostei mais do Feeling.
    E para a MTH,desejos de melhoras para que volte à sua melhor forma.

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  5. Quando terminei de ler já tinha coceira no dedão do pé...

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  6. ...não será um estranho feeling, Sapho?

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  7. Margarida Ferreira dos Santos27 de abril de 2009 às 13:14

    Feeling good!

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  8. Good Feeling, Feeling Good.
    Are you feeling Good ? Me too...
    And Congratulations.
    Very Good,Feeling!

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  9. Adorei, é o meu "género" de escrita, muchos greetings e parabéns partout. :-P

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  10. MTH, recita isto 3 vezes, "HasbunAllah wa Ni'mal Wakil"
    e dança um bocadinho à volta de ti mesma, que a coisa passa(s)-te, garantido :-P

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  11. Exercício da Escrita em estado puro...

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  12. Alvega, quando precisar ajuda, tenho a quem recorrer.
    Entretenha-se antes nas conversinhas com a Lady.

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  13. Ooopss... Fui mal interpretado. :-/
    MTH, eu não te estava exactamente a
    oferecer ajuda, espero bem que não precises. :-)
    Obrigado pelas sugestões de entretenimento, estava mesmo necessitado... :-P :-P :-P

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