domingo, 26 de abril de 2009

Esplendor na Erva

Sabia de cor o sabor do cigarro.
Usava-o, afinal, todos os dias, há muitos dias.
Primeiro daquela forma estúpida que só os adolescentes se lembram, querendo parecer mais velha.
Depois, tarde demais, já como hábito entranhado, como o cheiro nos seus farfalhudos caracóis. Quando ontem apagou o seu último cigarro, plena de consciência, a ocasião para reflectir sobre ele foi, portanto, mais que oportuna.
Habituara-se desde muito cedo a viver sozinha.
Os pais, ciosos da sua educação, mandaram-na para a metrópole, aos dezoito anos, com uma mala de verão numa mão e uma colecção de caixas de fósforos na outra, resquício único da sua infância e prontamente confiscada no embarque.
Chegada deparou-se com o inverno setentrional totalmente desconhecido para si, habituada ao trópico de Capricórnio; as roupas, logo ali, inúteis.
A tia, distante de afectos, também não chega para o calor que precisava naquele momento, e em muitos que se lhe seguiriam.
Depressa percebeu que, além dos fósforos, a própria infância lhe estava a ser confiscada.
Mas deixou-a ir sem lamúrias.
Foi andando, estudando, conhecendo gente.
Alguns amigos. Cresceu, formou-se, teve casa.
Nunca casou.
Preferia o hábito da solidão ao hábito de ter gente por perto.
Como Wilde, só acreditava na sociedade dentro de si e fazia disso gala.
O único companheiro, sempre presente, era o cigarro.
Um romance tão longo e pacífico que nunca sequer se lembrou de o pôr em causa.
Mais tarde, um cão veio partilhar esse casamento.
E viviam felizes os três.
Profundamente conhecedora da sua natureza, genuína como só podia ser, não se permitia investidas que à partida sabia serem infrutíferas.
Não procurou nunca parecer mais esperta do que era, devia pouco ao “parece mal” e com isto era de uma auto-suficiência assustadora.
Para os outros.
E assim, amigas chegadas havia realmente apenas três, que disputavam a primazia da sua amizade, nunca se contentando com um exaequo.
Alternando a companhia delas, haveria de passar muitas noites em debates e confidências.
A década convidava às experiências alucinógenas e sem estranheza a erva tomou o lugar do tabaco.
Nada. Nem a menor manifestação.
Sã e sóbria, plena de serotonina, como naturalmente o era.
Mais tarde, as linhas de cocaína, cuidadosamente dispostas sobre a mesa da sala para logo vir o cão bufar para cima do tampo e assim voarem doze contos pelo ar.
Vieram as americanas e as advertências: cuidado que esta é mesmo a sério!
E não mistures álcool!
Qual quê… Dentro do carro, esperando o efeito.
Os minutos passam, imensos; vêm as badaladas, a festa do novo ano e já se interroga se afinal aquilo não seria uma aspirina.
Desiste, animada com a convicção de achar que caiu num caldeirão de boa disposição quando era pequenina e todos os acessórios não a farão chegar mais alto que a sua própria essência.
Galvanizada pela emblemática experiência das drogas apaga, então, o último cigarro.
E é no momento seguinte que procura a razão daquele vício na sua vida.
Revive os últimos trinta e cinco anos de fumadora em segundos.
Sem consternação, chega rapidamente à conclusão que, tendo vivido já tantas vidas como os gatos, o cigarro fora, realmente, o seu único companheiro, o denominador comum de dois hemisférios, três amigas, quatro apartamentos e dois cães.
E ali o deixou, jazendo no cinzeiro, junto às passas dos desejos.
Anunciou a si mesma: deixei de fumar; passemos à vida seguinte!
Na manhã seguinte, a tirada do costume: ano novo, vida nova.
Pôs a mesa no jardim, sobre a relva, como não era hábito.
Para celebrar, acompanhou com pequeno-almoço à inglesa e um belíssimo charuto cubano.
Dear Prudence

6 comentários:

  1. Dear Prudence, loved it, every little bit of it. :-D
    (The sun is out, the sky is green...)

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  2. Dear Prudence...
    Abençoada serotonina!
    Não tenho relva nem jardim, mas vou experimentar os Cubanos, a ver se resulta...
    Excelente texto.

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  3. Dear Prudence, uma das minhas autoras, só pode ser Mulher, preferidas, da Antologia de Micro Contos do Galo. Parabéns, mais uma vez.

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  4. Belíssimo!
    Uma narrativa envolvente, sem dúvidas e sem porquês!
    Um conto feliz, quando se podia pensar o contrário...
    Go on, Dear Prudence!

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  5. Ode ao charuto e com razão.
    Vejos dois amigos sofrendo e muito, por culpa dos cigarros.
    E eu que andei pendurado em cachimbo durante mais de 30 anos, perdi o gosto repentinamente e sem saber porquê.
    Mistérios da vida !

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    1. «ODE AO CHARUTO E COM RAZÃO» ZÉ MANEL ??????????? ESQUECEU QUE O SEU SOGRO TEVE UM CANCRO NA LÍNGUA DEVIDO AO CHARUTO?????? ESTE BLOG TOLDA-LHE A MEMÓRIA ?????!!!!!!!!!

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