sábado, 18 de abril de 2009

O Tempo


“O tempo é igual para todos.
Os dias terão sempre 24 horas,
as semanas sete dias, os meses…, os anos…
Mas o tempo é sobretudo uma dimensão psicológica e por isso as 24 horas, os sete dias e… podem assumir, para cada um de nós, proporções devastadoras, benéficas e até terapêuticas ou todas em simultâneo.
Não há nada que o tempo não cure, dizem. Mas cura pressupõe ferida e essa, dependendo do grau, pode deixar cicatrizes que, mal curadas, ficam feias ou muito visíveis.
A ferida narcísica que, como a própria designação indica, atinge a nossa auto imagem, arrancando-nos uma parte do nosso ser, já bateu em alguns de nós de forma tão violenta que nada de pior nos pode voltar a acontecer.
E essa ferida, paradoxalmente, funciona como uma bóia de salvação. Sentimo-nos protegidos de tudo e de todos, repetindo até à exaustão “sobreviverei”.
Mas o tempo possui uma propriedade que é a de relativizar os acontecimentos.
E por isso este Tempo, aqui e agora, traz mais uma ferida que teima em abrir-se em vez do contrário.
Tudo indica que a cicatriz será feia e grosseira porque mal costurada, muito mal costurada.
Restará aprender a viver com ela, a olhar para além dela e da sua causa, a buscar o Tempo antes dela: Magnífico, Único, Intenso e Forte.
Que será eterno mas que foi tão fugaz, um sonho desfeito”.

À medida que lia a carta, o rosto dele crispava-se e, no final,
com os maxilares a latejar, o olhar assustado e perdido, rasgou-a.
Deu um murro violento na janela e o sangue envolveu-o.
Nessa noite bebeu vários gins e vodkas,
ao som de Bruce Springsteen. No máximo.
As paredes estremeciam. Os vizinhos que já lhe conheciam
o temperamento deixaram-se ficar.
Não atendeu telefonemas e dormiu no sofá da sala,
vestido e ensanguentado.

Quando acordou no dia seguinte, tarde alta,
tomou um duche demorado, fez a barba
e foi ao centro de saúde tratar da ferida.
Comprou o jornal e leu-o com um grande pequeno-almoço,
numa esplanada com sol.
Sentiu-se outro, poderoso mesmo.
Telefonou-lhe e combinaram encontrar-se.
Ela desceu e entrou no carro.
De expressão fechada, vinha decidida
a não se deixar ir mais uma vez. Não trocaram palavra.
Ele entrou no túnel e disse-lhe:
“a tua vida vai ser comigo, até ao fim”.
Acelerou e ela só teve tempo de ver o ponteiro nos 240.
A ambulância não chegou a tempo.
Pinta

3 comentários:

  1. Pinta e os seus amores que, de uma maneira ou outra, acabam sempre mal.Gostei do Micro, com ambiente de filme francês.

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  2. Pinta por favor, o facto de contar e escrever bem, conforme tem demonstrado mais a obriga a não nos levar para o lado triste da vida.
    Velocidade mas para a alegria de viver.

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  3. O que faltava era começar a haver Censura nos temas dos micro contos...Cada um escolhe se quer escrever coisas cor de rosa, bem dispostas, ou mais realistas e com cores mais escuras.Senhor Zé Manel a vida não são só passarinhos e borboletas, ou anedotas brejeiras.
    Quimera, o Conto está muito bom !!!!

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