sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

XXXII - Testemunha de defesa

O inspector com cara de fuinha pareceu ficar surpreendido por me ver naquele local (...mas como é que ele conheceria a minha cara, que não aparecera na televisão?) mas recompôs - se com rapidez.
“ Então onde é que julga que ia, sr.Quirino…ou melhor, Dr.Quirino?”
O bigodinho paralelo aos lábios finos, que parecia ter sido traçado a tira linhas, acentuava-lhe ainda mais o ar de fuinha. Comecei a sentir o formigueiro que antecede os meus ataques de génio.
Embora, habitualmente tenha um temperamento tranquilo e pouco violento, nas poucas vezes em que me irrito passo de um extremo ao outro, em segundos, alcançando uma violência verbal, e até física, inesperadas.
Era o que estava a começar a acontecer…

“ Onde é que eu julgo que ia ? Ia ao vosso encontro, já que pelos vistos, sem a minha ajuda não me conseguem encontrar e começam logo a aventar hipóteses idiotas de fugas, a ‘monte’, eu sei lá…”
Reparei, pelo canto do olho, que o operador de televisão registava todas as minhas palavras.
O tal inspector pareceu ficar hesitante entre o tipo de resposta a dar-me mas, o facto de estar a ser filmado, deve ter pesado para que optasse pela versão soft.
“ Que é isso, Dr.Quirino…o senhor não é suspeito !” mas, pelo canto da boca “…por enquanto.”
E olhando à volta “ poderemos sentar-nos numa destas mesas e ter uma conversa informal?”.
Fez um sinal para que o mastodonte afastasse os homens da televisão “…mas sem outras testemunhas !”

Contrariado, o repórter saiu do café, acompanhado pelo colega, enquanto o brutamontes montava guarda á porta que quase ocupava, na totalidade, com o seu enorme corpanzil.
25 Cents & Friends, deram de frosques de mansinho, tentando não dar nas vistas.
A D. Rosa aproximou-se da nossa mesa, com um ar nervoso, que nunca antes lhe vira, torcendo, entre as mãos, um pano branco.
“ Os senhores vão desejar alguma coisa?”
Sem sequer olhar para a pobre senhora, o inspector fez um gesto para que ela se afastasse.
Mesmo tendo perdido o apetite com o ocorrido, resolvi marcar a minha posição.
“ Para mim, D.Rosa, um galão muito claro e quente e um croissant com queijo…sem manteiga.”
O fuinhas olhou-me com um ar que pretendia ser intimador, mas era apenas ridículo.
“Folgo em ver que a morte do seu amigo, não lhe tirou o apetite…”
Resolvi aproveitar a ‘deixa’ “ Mas, afinal, o que é que, na realidade aconteceu ao António?”
Sentado que estava de costas voltadas para a porta, vi que o inspector Gonçalves, como entretanto apurara ser o seu nome, fingia perscrutar a rua, como que a ganhar tempo, antes de responder.

A chegada da D.Rosa com o meu pequeno-almoço deu-lhe os segundos adicionais, de que ele necessitava.

“Esse é um assunto que está a ser investigado e sobre o qual não posso falar” e, ao ver que eu atacara o croissant ainda quente do forno, com óbvio deleite "…o que lhe posso adiantar é que a hipótese de crime se mantem.”
Se era sua intenção tirar-me o apetite não conseguiu.
Os croissants da “Estrela”, estaladiços e amanteigados, eram uma das, inúmeras, tentações a que não sabia, nem queria, resistir.

Agora que tinha começado o ‘fuínhas’ Gonçalves, esqueceu o ‘segredo policial’ e continuou.
“ A sua entrada na história fez-se através da fotografia encontrada ao lado do cadáver em que vocês os dois, mais duas mulheres com pinta de nórdicas, estão junto a uma janela toda engalanada…e, posteriormente, com a confirmação que o último telefonema feito daquela casa, pelo proprietário ou por alguma ‘visita’, tinha sido feito para si !”
Calou-se e tentou fazer um ar pretensamente inteligente que vira, certamente, nalguma série de televisão.
“ Então se telefonaram para mim, como é que eu posso ser suspeito?”

Mal acabara de fazer a pergunta, já estava arrependido de a ter feito. O inspector, apercebeu-se disso.
“ Em primeiro lugar, ó Doutor, ninguém o classificou como suspeito. Em segundo, muitas hipóteses se podem avançar…”
“Como por exemplo?”
“ O seu amigo pode ter-lhe telefonado e pedido que o fosse urgentemente visitar. Pode ter sido outra pessoa a fazer a chamada para o informar do ocorrido. Ou, por fim, pode ter sido o próprio Nuno, perdão, Dr. Nuno a telefonar para si próprio, para afastar as suspeitas…”

“ Mas eu nem sequer saí de casa…” o ridículo das hipóteses levantadas, não me permitia outro tipo de argumentação.
“ E como é que eu vou saber isso? Tem testemunhas?”

Como estava de costas para a porta, não dera pela sua chegada.
Mas a frase, clara e definitiva, não permitia dúvidas.
“ Por acaso, até tem. Eu passei a noite toda, na companhia do Nuno…”

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