Os anos zero começaram com uma imensa esperança que, em parte, tinha que ver com o simbolismo da data, o início do terceiro milénio, e, em parte, advinha também de factores objectivos: o rescaldo da queda do Muro de Berlim e do fim da ameaça soviética, a resolução de vários conflitos regionais já fora de época, o fim do apartheid na África do Sul, os avanços da Índia e da China contrariando o seu anunciado destino de caos ingovernável, a globalização como factor potenciador da competitividade e do progresso e um crescimento económico que parecia sustentado em alicerces mais sólidos que nunca. Enfim, uma ordem económica internacional mais justa, uma menor tolerância para com as ditaduras, uma atenção mais séria aos problemas ambientais e energéticos. A chegada do terceiro milénio prenunciava, se não um tempo novo, pelo menos uma nova esperança.
Tudo visto e revisto, parece-me que a década da grande esperança foi, essencialmente, uma década inútil, para não dizer falhada. Mesmo aquilo que parecia fácil de avançar, como o combate às alterações climáticas e uma melhor gestão da energia e dos recursos esgotáveis do planeta, marcou passo ou regrediu mesmo, como ainda agora se viu com o grande fiasco de Copenhaga. E pequenas questões pendentes há décadas, onde o simples bom senso imporia uma solução óbvia - como o conflito israelo-palestiniano - continuaram exactamente no mesmo ponto de intransigência, sem que a comunidade internacional tivesse a determinação de impor uma solução, se necessário, à força. Tanto o clima como o Médio Oriente ilustram, aliás excelentemente, o que são estes tempos de impasse, governados por uma geração de líderes sem categoria e sem visão. Não foi por acaso que a chegada de Obama à Presidência dos Estados Unidos foi saudada pelo mundo inteiro como a vinda de um messias salvador.
De facto, nunca se dirá o suficiente sobre a tragédia que foram os oito anos da presidência Bush e o quanto o mundo, então unipolar, estagnou e regrediu com o maior idiota que a humanidade jamais viu à frente dos seus destinos. Mas, não nos podemos queixar de mais: já é uma sorte que o próprio mundo tenha sobrevivido a oito anos daquele incompetente e dos seus inacreditáveis homens de governo. Mas pagámos todos a factura e ainda continuaremos a pagá-la por muitos e maus anos.
A maior mentira da década foi a da existência de armas de destruição maciça, que justificaram a invasão do Iraque. A mentira grosseira, fabricada conscientemente por Bush e Blair e apadrinhada por dirigentes menores, como Berlusconi, Aznar ou Durão Barroso, custou e ainda custa um alto preço - não apenas no Iraque e no Afeganistão mas em cada cidade ou em cada aeroporto do Ocidente, onde a ameaça sempre presente da Al-Qaeda e do fundamentalismo islâmico tornou a nossa vida de todos os dias infinitamente pior. Em breve, viajar será um pesadelo e a bordo de um avião estaremos todos como prisioneiros. Prisioneiros de Osama Bin Laden, o verdadeiro homem da década - aquele que, infelizmente para o mal, mais mudou a nossa vida. Do fundo da sua gruta nas montanhas da fronteira do Afeganistão com o Paquistão, o homem que Bush jurou apanhar "vivo ou morto" derrotou o Ocidente com a mais eficaz das armas: a do medo. Por causa dele, não apenas viajar se tornou um suplício como tantos outros dos nossos direitos fundamentais, conquistados a longas penas no decurso da história, vão caindo por terra, um por um: hoje vivemos em sociedades policiadas, com cada pormenor das nossas vidas devassado a extremos impensáveis ainda há pouco. E, o que é mais grave, habituámo-nos: habituámo-nos a caminhar nas ruas de Londres com uma câmara a filmar-nos constantemente e onde quer que estejamos, habituámo-nos a ter os nossos telefones escutados, a nossa correspondência controlada e lida, todas as nossas andanças vigiadas ao minuto e ao quilómetro, a nossa vida profissional, financeira e pessoal inteiramente exposta aos olhares de polícias e magistrados que já ninguém controla. Eis no que Osama Bin Laden transformou as nossas democracias. Eis o que custou a mentira do Iraque - que teve prioridade sobre a necessidade evidente de ganhar a guerra no Afeganistão.
Curiosamente, porém, alguma coisa houve que fugiu ao controlo do big brother universal que nos governa: o capitalismo. Uma geração inteira de economistas ditos liberais quis acreditar que a libérrima concorrência era a solução única e planetária para o progresso das nações - de todas as nações. Um dia, quando se escrever com a necessária distância a história da crise financeira nascida nos Estados Unidos em 2008, será difícil acreditar como é que tão poucos conseguiram enganar tantos durante tanto tempo. E como é que tiveram o absoluto despudor de o fazer, sabendo que se arriscavam a enviar milhões de pessoas para o desemprego, a arruinar milhares de empresas com futuro, a roubar biliões de poupanças de uma vida a trabalhadores honestos. Mais difícil ainda será entender como é que, Madoff à parte, uma vez a crise ultrapassada à custa do sacrifício do dinheiro dos impostos de cidadãos inocentes, tudo retomou o seu caminho habitual, com os mesmos responsáveis à frente dos mesmos negócios e com os mesmos métodos e a mesma criminosa ganância a determinarem as regras do jogo.
Esta década sem sentido, sem nada de grandioso, sem estadistas como um Willy Brandt, um Gorbatchov ou um Mandela, reflecte a crise de valores morais, a crise de elites do mundo de hoje. As grandes causas do nosso tempo são a perseguição aos vícios ou prazeres alheios, o governo do politicamente correcto ou a preparação dos países para as histerias colectivas, normalmente cozinhadas por interesses comerciais ocultos (e tivemos vários nesta década, a começar logo pelo bug do milénio, seguido da epidemia das vacas loucas, as armas nucleares e químicas de Saddam Hussein, a paranóia do Antrax, a gripe das aves, e agora, para acabar em beleza, a gripe A - esse extraordinário embuste farmacêutico mundial).
É uma década que não deixa saudades. Nenhum facto verdadeiramente grandioso a marcou. Aqui e ali, e como era inevitável, a ciência avançou - sobretudo no domínio da medicina e das comunicações. Mas o mundo não ficou mais seguro, mais viável ou mais justo. A vida moderna não ficou mais agradável, os princípios éticos dominantes são os impostos por uma maioria imbecilizada, que não lê, não se informa e não reflecte - apenas troca opiniões sem fim e sem responsabilidade alguma na profusão de blogues, redes sociais e revistas de mexericos onde se imaginam a vanguarda de qualquer coisa importantíssima. Se alguma coisa caracteriza o nosso tempo é a legitimação da mediocridade. Esta foi uma década de avanço da mediocridade. Mas talvez a próxima seja uma época de exigência: se não por escolha, talvez por necessidade.
Miguel Sousa Tavares in Expresso
sábado, 9 de janeiro de 2010
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Houve tempos em que não simpatizava com MST, sem razão qualquer, daquelas coisas à futebol, gosto deste e não daquele.
ResponderExcluirHoje, arrepiando intenções, reconheço-lhe uma enorme clarividência na escrita e, sobretudo, uma forma de intervenção que invejo.
Bem vindo, Pirolito !
ResponderExcluirNa verdade, o MST consegue fazer com que muitos dos seus leitores, eu incluido, alterem a opinião a seu respeito.
Mas escreve bem, há que o dizer, concordemos ou não com as suas opiniões.
Mas seria muito bom se voltassemos a ter por aqui, a opinião de muitos dos que visitam este animado blog !
Miguel Sousa Tavares está para Bush, como o Zé Manel está para o Pinóquio...
ResponderExcluirFalando a sério:
Só para ter acesso a Crónicas como esta, vale a pena continuar a comprar o "Expresso".
MST é um jornalista de excelência, para além de ter aprendido em casa, desde pequeno, os valores que devem orientar a vida das pessoas de bem.
É inteligente, lúcido, coerente, frontal e está à vontade para falar de mediocridade, porque é um conceito que não se lhe aplica.
Só temo que, contrariamente ao que ele espera, a próxima década não seja uma época de exigência: nem por escolha, nem por necessidade...
Assino em baixo.
ResponderExcluirSó espero que o 'home' se contenha no capítulo "romances", é um desespero de tão maus que são...
:-(