Não me considero nenhum cobardolas.
Nos tempos em que jogava râguebi, até era considerado até um duro, defensor da velha máxima ‘antes que quebrar que torcer’, mas tenho que confessar que os poucos metros que me separavam da recepção custaram-me a percorrer e que, durante o curto trajecto, vários cenários me ocorreram.
Seria o marido da tal B? E, em caso positivo, quais seriam as sua intenções?
Estaria armado? Não era melhor dar uma apitadela para a polícia?
Ao passar pelo Gustavo e pelo Tomás que, pelos vistos, tinham pouco que fazer e discutiam, agora, o direito, ou não, à adopção, pelos casais do mesmo sexo, estive quase a dizer-lhes que me acompanhassem até á entrada do escritório, mas uma réstia de machismo e um orgulho marialva impediram-me de pedir-lhes ajuda.
Arrependi-me logo, ao ver o tal sujeito, realmente com cara de poucos amigos, que me aguardava junto á porta do escritório.
Alto, entroncado, mal escanhoado e com um fato que , apesar do bom corte, só lhe acentuava a volumetria de porteiro de discoteca.
O sobrolho carregado, a mandíbula tensa pareciam não pressagiar nada de bom…
…Contudo, mal me viu, um sorriso largo ocupou-lhe o rosto e avançou para mim de braço estendido.
“ Nuno Quirino?” e perante o meu tímido assentimento” Eu sou o Alberto Salcedas…”
O meu rosto devia denotar uma amálgama de sentimentos.
Alívio, mas também, surpresa interrogativa…
Apercebendo-se disso, o matulão explicou:
“ Telefonei-lhe do Porto, a semana passada, por causa daquela tradução especial…” e, olhando à volta, baixou consideravelmente o tom de voz”…aquele manuscrito que eu encontrei…”
Só então se fez luz na minha cabeça.
Ocupado como tenho andado, desde esta madrugada, com os telefonemas e mail da misteriosa B, esquecera, por completo o estranho telefonema recebido há cerca de uns dez dias.
Mas, recuemos até essa tarde…
Estava eu no meio da tradução do último livro do Robert Wilson, quando a recepcionista me ligou com uma chamada de alguém, que dizia ser particular.
Não gosto de ser interrompido quando estou a meio de uma tradução, principalmente se literária e, mais ainda, quando se trata do meu amigo Robert, de quem tenho a exclusividade das traduções para Portugal.
O Robert Wilson é meia dúzia de anos mais velho que eu e tem um pequeno monte, na Aldeia da Serra, perto de Estremoz, onde já o visitei diversas vezes.
Foi nesse recanto, paradisíaco para uns, aborrecido e chato para outros, que produziu o Quarteto de Sevilha, obra que iniciou o nosso profícuo contacto.
Voltemos ao telefonema…
A voz, do outro lado do telefone, era áspera embora tentasse ser agradável e educada.
“ Boa tarde Dr. Quirino, estou a telefonar-lhe, recomendado por um amigo comum que me pediu sigilo…” e, perante o meu desinteresse “ Sou um entrepreneur nortenho e negoceio em Arte, vinhos, bem…um pouco, com tudo o que dá dinheiro!”. A gargalhada seca estava de acordo com o timbre da voz.
A vontade de voltar ao intricado cenário de mais um policial, sempre original, do Robert Wilson fez-me apressá-lo .
“ E em que é que eu posso ser-lhe útil, Sr…?”
“Ah, desculpe não ter-me apresentado, Salcedas, Alberto Salcedas…Comendador Salcedas” som de pigarro” O que tenho para dizer-lhe não pode ser falado pelo telefone…mas passa pela tradução de um manuscrito valiosíssimo…”
O acordo estabelecido com o Gabinete de Traduções permite-me ter os meus clientes e trabalhos particulares, por isso não hesitei em responder “Passo todas as manhãs aqui no escritório, por isso pode marcar o dia que quiser, mas antes de avançarmos mais, gostaria de saber de que autor estamos a falar.”
“Hemingway. Ernest Hemingway…já ouviu falar?”
quarta-feira, 13 de janeiro de 2010
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Excelente, como de costume ! :-)
ResponderExcluirP.S.
Para os mais distraídos, o Robert Wilson estudou em Oxford, e tal como o João também trabalhou em publicidade, tinha casa por aqui e vive neste país -- quando por cá está -- ganhou o Gold Dagger da Crime Writers Association para o melhor policial de 1999 com A Small Death In Lisbon/Último Acto em Lisboa e eu julgava que o último dele era de 2006, The Hidden Assassins/Assassinos Escondidos, mas é capaz de já haver o quarto desta série Javier Falcón, como o João deixa indicado em cima...
Obrigado Alv ega.
ResponderExcluirComo quase sempre as tuas notas de rodapé ajudam a compreender e enriquecem os textos editados.
Realmente, já saiu o quarto, e último, livro do tal quarteto de Sevilha - The ignorance of Blood/A ignorância do sangue ( D. Quixote)com um Javier Falcón soberbo, como sempre.
Just my two cents...
Só espero que o célebre manuscrito seja a continuação de A Moveable Feast .
ResponderExcluir"I absolutely must decline
To dance in the streets with Gertrude Stein
And as for Alice B. Toklas,
I'd rather eat a box of fucking chocolates."
Brendan Behan (RIP), é o da esquerda... .
lol ! :-)
Está-me cá a parecer que este Comendador Salcedas é "maderense"...
ResponderExcluirDe muita qualidade, o texto desta "Amante Misteriosa"!