quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

VII - No cimo do Parque

A vista é soberba. Os nossos olhos percorrem o Parque Eduardo VII, descem a Avenida, sobem ao Castelo e param só lá longe, na Ponte.
Embora, o restaurante se situe a poucos minutos, a pé, do meu local de trabalho, nunca lá tinha posto os butes.
O meu género são mais os do tipo atascado com boa comida e onde tratamos os empregados pelo nome.
E Lisboa é pródiga nessas preciosidades como o Stop do Bairro, em Campo de Ourique,
ou o 1º de Maio, no Bairro Alto.
Mas sem snobismos de sinal contrário, tenho que reconhecer que a decoração elegante, moderna e cosmopolita ( ...se é que isto quer dizer alguma coisa) me estava a agradar.

Depois de ter percorrido as poucas centenas de metros que separam o Gabinete de Traduções do local onde agora me encontrava, no interior de um Bentley luxuoso com motorista fardado, o primeiro choque agradável, diga-se de passagem, tinha sido o enorme coração de Viana feito de talheres de plástico amarelos ( ...Joana Vasconcelos, I presume?).

A meia dúzia de mesas ocupadas reunia alguns dos nomes da toute Lisbonne, principalmente do mundo das Finanças.
Num dos cantos, um expansivo Joe Berardo gesticulava, duas oitavas acima do devido, perante o sorriso amarelo do José Miguel Júdice, ao que julgo saber, um dos proprietários do restaurante.
Logo após termos sido conduzidos à tal mesa de onde se avistava ‘ esta Lisboa que eu amo’ o Comendador Salcedas, deixara-me, para ir cumprimentar o ‘seu amigo Berardo’.
Este devia, realmente, conhecê-lo porque levantou-se e, efusivos, caíram nos braços um do outro. Farinhas do mesmo saco…

Entretanto eu entregava-me a uma tarefa bem mais agradável.
Escolher o que iria comer, ou melhor, degustar, ao almoço.
Os nomes dos pratos eram tão compridos como iria ser, certamente, o montante a pagar.
Salada de Lavagante com Guacamole e Caneloni de Tomate, foi a entrada escolhida.
A que se seguiu uma Mil folhas de Perca e, por insistência do Comendador, preocupado com a excelência do seu convite, um Magret de Pato com Pimenta Verde e legumes de Inverno.
Tudo isto acompanhado por um Moscatel roxo, um branco do Alentejo e um tinto do Douro.
Infelizmente, já não consegui aceitar o Gelado de Chocolate da Costa de Marfim com molho de Café com Rum.

Apesar de considerar a minha companhia o perfeito exemplo do novo rico, self made man sem grande educação, apreciei que tivesse esperado pelo fim da refeição, magnífica acrescente-se, e digna da estrela Michelin ostentada pelo restaurante, para começar a falar de trabalho, ou de negócios como ele preferia chamar-lhe.
“ Talvez você não saiba, mas correm rumores que esse tal de Hemingway, sob a capa de machão, amante de touradas e safaris africanos, pegava de empurrão…não sei se me entende?” um piscar de olhos e uma gargalhada boçal.
À falta de melhor, optei pelo silêncio.
Alberto Salcedas, gostava de se ouvir, não precisava de interlocutor.
“ E então, tinha uma quinta no Douro, que agora é minha, para onde dava umas escapadelas, incógnito, com uns namoradecos e onde escreveu alguns dos seus romances mais célebres…”
Confesso que tinha conseguido captar-me a atenção. Claro que insinuações veladas sobre as opções sexuais do grande escritor já tinha lido, mas tinha-as arquivado no gossip, sem qualquer interesse, pelo menos para mim.

Mas já as suas estadias em Portugal, numa quinta, eram surpresa total…
Achei graça à coincidência de poucas horas antes estar a traduzir um escritor, também ele com uma quintarola em Portugal.

Nesse momento, o chef Joachim Koerper veio até à sala para cumprimentar os clientes mais habituais e, depois de olhar à volta, dirigiu-se à nossa mesa, com um amplo sorriso.
O Comendador agitou-se na cadeira, impante de orgulho e autosatisfação.

Mas foi a mim que o Joachim se dirigiu, numa mistura de castelhano com português.
“ Hola Nuno, es la primeira vez que te vejo por cá. Estás cambiando para pequeno burguês?”

4 comentários:

  1. Isto está a piar mais fino... mas essa de o Hemingway "pegar de empurrão" é fantasia do comendador, iria apostar.

    Muito demasiada areia para a camioneta dele (dele, comendador...)




    P.S..
    Ora aqui fica o chef (e um dos proprietários também, salvo erro...) desse restaurante, este alemão aqui , considerado um dos melhores chefs da península ibérica.

    Daí (e provávelmente também da estrellita) o montante a pagar e os nomes compridos na ementa...



    (Só lá fui uma única vex, logo no início, e foi um dos meus irmãos a pagar..
    Mas há restaurantes mais caros, e sem estrela nenhuma, façam favor de conferir os nips da Penha Longa.)

    :-)

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  2. Esse castelhano é do melhor, "estás cambiando para pequeno burguês" é muito bom.

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  3. Proposta de banda sonora para o manuscrito , e sim. esta era uma das que constava na
    Music at the Finca Vigia: a preliminary catalog of Hemingway's audio collection : Rehab, e não, não foi aquela estúpidinha daquela bebedolas que inventou... foi o Noël Coward em 1934...

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  4. Galo...
    A Quimera tem razão!
    E ela tem um diploma em Castelhano!
    Esta ainda é melhor do que a outra do "tabulero que está en el suelo"...

    Quanto ao resto...aplausos!
    Estou a gostar muito desta escrita "deslizante"...

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