sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

VIII - O manuscrito desconhecido

O meu conhecimento do chef Koerper data de muito antes dele ter iniciado esta aventura gastronómica com dez dos seus amigos.
Durante os meus anos de casado com a Marta, era habitual darmos saltadas de fim de semana até Espanha e foi numa dessas curtas viagens que descobrimos, em Alicante, o Girasol onde o chef, de origem alemã mas de sensibilidade e cultura mediterrânica, nos recebeu com a sua simpatia habitual.
Gostámos tanto, que passámos a visitá-lo duas ou três vezes por ano, o que foi cimentando a nossa amizade.
Depois da minha relação, melhor dizendo, do meu casamento com a Marta ter chegado ao fim, ainda tentei levar lá duas ou três namoradas mais interessantes, mas não era a mesma coisa.
E o Joachim apercebia-se disso, porque arranjava sempre maneira de me atirar com alguma frase de duplo sentido.
‘A alta Cozinha só se consegue com os ingredientes certos’ ou então ’ cogumelos há muitos, e até podem ser parecidos, mas só alguns, muito poucos, são excepcionais’.
Ou então era eu que via segundos sentidos em tudo o que ele dizia…

Depois de uma breve conversa de circunstância o chef continuou a sua ronda das mesas deixando-me perante um estupefacto Comendador, para quem eu, a partir daí, tinha acabado de subir uns quantos pontos.
Enquanto íamos bebendo dois belos cognacs em balão aquecido, o meu companheiro de almoço começou a contar a história, que cedo se mostrou mais interessante do que muitos dos romances que eu traduzira até à data.
“ Ernest Hemingway um dos maiores romancistas, contistas e, até, jornalista de que há memória sempre tentou interpretar, na vida real, as aventuras que cruzavam os seus livros.
Depois de ter vivido em Paris, onde fez parte da Geração Perdida, foi correspondente em Madrid, durante a Guerra Civil Espanhola…”
Via-se que o Comendador, tinha a lição bem estudada.
Resolvi interrompê-lo”…de essa sua experiência, surgiu o Por quem os Sinos dobram.”
Salcedas não ligou á minha tentativa de entrada em cena”… foi nesse período que terá comprado a quinta no Douro, garçonniére para os seus amores proibidos, visto manter um vasto curriculum de conquistas femininas que gostava de tornar públicas, mas ocultava, até dos mais íntimos, a sua bissexualidade…”
Agora, que ouvia estes pormenores lembrava-me vagamente de ter lido qualquer coisa acerca de Joe Russel, grande amigo de Hemingway, com quem este chegara a Cuba pela primeira vez sozinho num pequeno barco.
A bissexualidade , a ter existido, não seria certamente muito bem aceite por um homem que gostava de anunciar aos quatro ventos a virilidade da caça, das touradas, da guerra e das armas de fogo.
Segundo o Comendador, para além das relações fortuitas e eventuais, Ernest Hemingway que descobrira Portugal, quando trabalhava já como espião, em virtude deste país ser neutro e aqui se abrigarem muitos refugiados, iniciou uma relação mais duradoura, com um conhecido pintor e poeta português, recentemente falecido.
“ Como deve calcular, a discrição impede-me de referir nomes” e vendo que eu não manifestava a mínima curiosidade, prosseguiu, um pouco desiludido” esse pintor, 30 anos mais novo do que o americano, morreu recentemente, sem família, e deixou para um caseiro a propriedade, que pouco antes do suicídio em 1961, o agente 08 , era assim que Hemingway era conhecido nos serviços secretos, lhe deixara em testamento.”
Senti que nos aproximávamos do ponto alto de toda esta história.
“ Consegui comprar o terreno por bom preço, para ampliar as minhas vinhas e quando dei uma volta pela casa existente, já muito degradada, encontrei um velho baú cheio de fotos, manuscritos e objectos pessoais desse tal pintor e poeta, mas, também fotos deste com o autor do Velho e o Mar..”
Gostei do toque de erudição, mas já não aguentava mais.
“Sim…mas, onde é que está esse tal manuscrito?”
Foi a vez do Comendador me olhar com um sorriso de superioridade.
“ Vejo que consegui, finalmente, despertar o seu interesse” fez sinal ao empregado para que este enchesse de novo os cálices.
“ Por casualidade, uma das fotos, a única com dedicatória, dizia ‘With Friendship Ernest’, nada de muito comprometedor…só que depois encontrei um manuscrito, de que tenho aqui uma cópia, com a mesma assinatura…”
Por essa altura, eu já estava debruçado sobre a mesa e quase lhe arranquei o molho de papel das mãos quando ele o sacou da pasta que transportava e a que eu não ligara nenhuma.

A primeira folha que vi, dizia :
“ International Brigade Secrets by E. Miller”

Ora Hemingway chamava-se Ernest MILLER Hemingway…

2 comentários:

  1. lol !

    :-))

    Andas a 'salgarizar' a "coisa" (não me faz diferença, sou um incondicional do dito, desde pequenino...)




    Uma pequena nota:

    O 'velho' Hemingway trabalhou realmente para os serviços secretos americanos durante a WW II, e nada ilustra melhor isso que o que ele próprio contou em Islands in the Stream/Ilhas na corrente , havia uma trad. port., salvo erro da Europa/América, gosto mais disso que do 'O Velho e o Mar'.

    Sinopse:

    Começando na década de 1930, 'As ilhas da corrente' narra o destino de Thomas Hudson, suas experiências como pintor nas ilhas da corrente do golfo de Bimini e suas atividades anti-submarinas no litoral de Cuba durante a Segunda Guerra Mundial. Sua solidão é quebrada, entretanto, quando recebe a visita, durante as férias, de seus três filhos. A parte mais emocionante da história ocorre num bar em Havana, onde uma vasta gama de personagens se encontram - incluindo uma prostituta que se destaca como uma das mais vívidas criações de Hemingway - desenvolvendo diálogos incrivelmente ricos.

    Creio que são 3 (ou serão 4 ?) contos, e o último ilustra perfeitamente o que acabei de dixer.

    :-)

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  2. Estou a ler, a ver a cena no retaurante do Parque Eduardo VII, e já quase me esqueci da B e dos perigos que perseguem o Nuno...

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